A Invenção de Hugo Cabret

SE, COMO AFIRMAM OS TEÓRICOS, o cinema é a “arte do tempo” ou a “arte da luz”, Martin Scorsese parece querer ilustrar estas premissas com seu A Invenção de Hugo Cabret, indicado a 11 categorias do Oscar neste ano (Filme, Diretor, Roteiro Adaptado, Montagem, Fotografia, Direção de Arte, Figurino, Trilha Sonora, Efeitos Visuais, Mixagem e Edição de Som). Antes de tudo, não se trata de uma produção endereçada ao público infanto-juvenil ou apenas aos cinéfilos de plantão, mas a qualquer pessoa que goste minimamente do ritual de ir ao cinema – e o filme deve ser visto em tela grande, uma vez que a projeção é em 3D, numa espetacular utilização desta tecnologia.

Mais do que narrar as aventuras do solitário e esperto órfão Hugo (Asa Butterfield) que vive escondido em uma estação de trem de Paris, buscando desvendar a engrenagem de um misterioso protótipo encontrado por seu falecido pai (Jude Law), o filme – uma adaptação do romance infanto-juvenil de Brian Selznick – faz uma declaração de amor ao cinema e a um de seus mais geniais pioneiros: o mágico francês, “pai dos efeitos especiais”, Georges Méliès (1861-1938).

Como pode ter sido relegado ao esquecimento (ainda em vida) um dos maiores inventores do cinema, autor de mais de 500 filmes – infelizmente, muitos perdidos na inexorável marcha do tempo? “O tempo não tem sido gentil com os filmes” – diz o personagem do pesquisador (interpretado por Michael Stuhlbarg) a um Hugo que, assim como muitos espectadores, desconhece aquele cineasta que já simulava 3D em sua época, com várias camadas de belos cenários e técnicas inventivas; que tirava de sua mente criativa as ideias mais lúdicas e inusitadas a fim de encantar o público, percebendo o potencial do cinema para tornar possível o impossível. Ben Kingsley compõe com magnífica fidelidade um Méliès comovente, desiludido e digno, apresentando-o às novas gerações, numa exaltação à magia do cinema como arte do espetáculo que ele ajudou a criar.

“O que é incrível sobre Méliès é que ele explorou e inventou basicamente boa parte do que fazemos hoje com computadores, tela verde e tecnologia digital, mas ele conseguiu apenas com sua câmera e estúdio”, afirma Scorsese, no folder de divulgação do filme. “E quando olho para trás e vejo os seus filmes originais, me sinto emocionado e inspirado, porque eles ainda carregam a vibração da descoberta mais de 100 anos depois de terem sido feitos. E também porque eles estão entre as primeiras e mais poderosas expressões de um formato de arte que eu amo, e ao qual me dediquei pela maior parte da minha vida”.

Cinéfilo desde a infância solitária e asmática, grande conhecedor da História do Cinema e fervoroso defensor da preservação e restauração de filmes, Scorsese conduz o espectador pelo mundo e a época em que o cinema se estabelecia como principal forma de entretenimento do século XX, desde seu primeiro plano: um envolvente mergulho da câmera pela cidade luz até a estação de trem e as engrenagens de um imenso relógio em que vive o protagonista. A chegada da câmera à estação nos remete a um dos primeiro filmes exibidos publicamente pelos irmãos Lumière, no Grand Café do Boulevard des Capucines, a 28 de dezembro de 1895, A Chegada do Trem à Estação de La Ciotat – episódio recriado dentro da acessível narrativa dos “filmes dentro do filme” que Scorsese habilmente articula.

Passado no início da década de 1930, A Invenção de Hugo Cabret ainda presta homenagem a vários momentos marcantes do período mudo e não só nas reconstruções de cenas dos fantásticos filmes de Méliès, com uma coloração que referencia suas películas pintadas à mão: Viagem à Lua (1902) e sua iconográfica lua atingida por uma bala de canhão, além de A Sereia (1904), em que Scorsese, com licença poética, possibilita um close-up inédito em Madame Méliès (interpretada por Helen McCrory). Além disso, insere trechos de O Garoto (1921, Chaplin), A Caixa de Pandora (1929, Pabst), O Gabinete do Dr. Caligari (1919, Wiene), A General (1926, Bruckman e Keaton), O Homem-Mosca (1923, Newmeyer e Taylor). Aliás, este último numa recriação dentro da própria narrativa, reforçando a ideia de que a vida (no caso, a de Hugo) imita a arte.

Através de seu filme e das obras citadas, Scorsese reporta à noção do cinema como grande invento do mundo moderno, com a exaltação da velocidade (lembrando que fotografias passam rapidamente por nossos olhos nos dando a ilusão de movimento): engrenagens, máquinas, trens e relógios (elementos que constituem a essência da visualidade do filme); além do fascínio e da “fantasmagoria” das primeiras imagens projetadas como misteriosas sombras de luz numa tela branca e numa sala escura. É interessante que uma das primeiras palavras pronunciadas por Méliès/Kingsley no filme seja “ghosts” (fantasmas), ao folhear o caderno de notas e desenhos de Hugo, que, por sua vez, remetem a um flip-book – um dos brinquedos óticos do século XIX que evidencia a própria origem das imagens em movimento.

Com interpretações cativantes do talentoso elenco, além do rigoroso trabalho da equipe com antigos colaboradores, Scorsese – novamente aparecendo como fotógrafo numa cena (como o fizera em A Época da Inocência, de 1993) – contagia o público com o prazer genuíno que sempre revela em seu ofício de cineasta. O filme ainda apresenta uma visualidade impressionante, desde a reconstituição de época primorosa, do veterano designer de produção Dante Ferretti, até os efeitos especiais que deixariam Méliès orgulhoso de seu legado.

Aliás, deve-se ressaltar a sábia e pertinente utilização da filmagem em 3D que, com raras exceções, vem sendo mal aproveitada nas produções atuais, vezes afastando o espectador do que acontece na tela – com a impressão de objetos sendo atirados em sua direção. No início de A Invenção de Hugo Cabret, flocos de neve parecem envolver toda a sala de cinema, para, a partir daí, nos conduzir ao interior do filme, através da ampliação da profundidade de campo, fazendo-nos mergulhar no mundo fascinante de Hugo Cabret e no universo de sonho da sétima arte. Na verdade, como disse Scorsese em entrevista: “Todos nós vemos em três dimensões”. E na primeira incursão por esta tecnologia de um dos mais relevantes diretores do cinema contemporâneo, através dessa imersão, potencializa-se a experiência emocional e estética do espectador que assiste ao filme.

Uma aula de cinema para crianças de todas as idades que amam a fantasmagoria que nos transporta por algumas horas para um mundo utópico, lúdico e encantador. Um refúgio que nos permite continuar sãos e otimistas neste mundo real tão assustador e desencantado…

Título original: Hugo
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: John Logan
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