de volta para o futuro

Crítica: De Volta Para o Futuro (1985)

SOU FÃ DE “DE VOLTA PARA O FUTURO” DESDE QUE ME ENTENDO POR GENTE. Não faço ideia de quantas vezes já assisti à trilogia. Quinze vezes? Vinte? Tela Quente, Sessão da Tarde, VHS, DVD, dublado, legendado… Só faltou ter visto no cinema, o que não foi possível por uma questão temporal – tanto eu quanto o primeiro filme nascemos no glorioso ano de 1985. Talvez um capacitor de fluxo resolvesse o problema. Também acompanhei religiosamente a série animada que passava na saudosa TV Colosso, e a trilha sonora do filme original foi o primeiro CD que comprei na vida. Até hoje, ainda assisto aos três filmes em seqüência a cada ano ou dois.

É que De Volta Para o Futuro é daqueles filmes que dá vontade de rever sempre. E a cada revisão você percebe um detalhe que passou batido nas quinhentas vezes anteriores, uma sacada do roteiro, das atuações, da direção de arte, sem nunca deixar de se envolver com a história. Porque antes de ser uma comédia de ficção científica sobre viagens no tempo, De Volta Para o Futuro é um filme sobre pessoas, focado apenas naquela turma de cinco ou seis e em como suas personalidades e formas de ver a vida mudam através do tempo, e do espaço-tempo.

Robert Zemeckis tinha apenas três filmes no currículo em 1985: o beatlemaníaco Febre de Juventude (1978), a comédia Carros Usados (1980) e o indianajonesco Tudo Por Uma Esmeralda (1984). Foi com De Volta Para o Futuro, feito a partir de um roteiro original escrito por ele e seu chapa Bob Gale, que a carreira de Zemeckis realmente deu um salto. Além das duas continuações (filmadas juntas e lançadas em 1989 e 1990), ele comandaria outras pérolas como Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988), Contato (1997) e Náufrago (2000), e ganharia o Oscar de direção por Forrest Gump (1994). Eu gosto muito da maioria dos filmes de Zemeckis – embora estranhamente não tenha tido a curiosidade de conferir suas incursões pelo universo do motion-capture na última década – e acho uma injustiça que seus colegas de geração, como Steven Spielberg e James Cameron, sejam tão lembrados pelo público geral como mestres do cinema-pipoca enquanto Zemeckis, dono de um currículo tão bom quanto, é um nome praticamente desconhecido para o espectador comum.

Bom, de volta para o De Volta.

O filme abre nos apresentando ao doutor Emmett L. Brown sem, no entanto, mostrar o doutor em si: vemos apenas os objetos em sua casa. Temos aqui um homem visivelmente obcecado com o tempo, dono de dezenas de relógios de todas as formas e cores tiquetaqueando simultaneamente. Um dos modelos traz um boneco dependurado no ponteiro, não só uma referência-flashforward a uma cena emblemática do final do filme, como também uma homenagem ao comediante Harold Lloyd (nenhum parentesco com Christopher) no filme mudo O Homem Mosca. Em seguida descobrimos que Brown é um inventor (a engenhoca criada para alimentar o cachorro me lembra a abertura do programa Rá-Tim-Bum), está falido (recortes de jornais orgulhosamente emoldurados informam que a mansão da família foi destruída e o terreno vendido) e tem em casa uma suspeitíssima caixa amarela com plutônio roubado de terroristas líbios. O que é que esse cara está tramando?

Os 15 minutos seguintes se dedicam a introduzir o personagem principal. Marty McFly é um adolescente típico: anda de skate, toca guitarra, é amado pela namorada e detestado pelo disciplinário da escola. Michael J. Fox já tinha 24 anos nas costas, mas convence perfeitamente como um moleque de 17. A família só lhe traz desgosto: irmãos fracassados, tio na cadeia, pai bundão e mãe amargurada com o rumo que a vida tomou. Os próprios filhos não entendem como seus pais podem sequer ter se apaixonado: retrógrados, acomodados, parecem que nunca foram jovens.

Nada disso é pra encher lingüiça. Das habilidades do garoto no skate até um panfleto sobre a Torre do Relógio entregue a ele, passando pelo programa de tevê a que o pai assiste, a referência ao tio Joey na prisão e a predileção de Marty pelo rock’n’roll (e o heavy metal), tudo servirá ao roteiro em algum momento, seja pra fazer uma piada, seja pra tirar Marty de alguma encrenca.

A aventura do jovem McFly começa quando ele encontra o doutor Brown no estacionamento de um shopping. Conhecemos aí mais dois trunfos do filme. Primeiro, o doutor Brown em pessoa. Christopher Lloyd faz o Doc como um simpático cientista maluco de cabelos brancos desgrenhados, esbugalhando os olhos nas horas certas, falando para o infinito, conversando com retratos de cientistas famosos e investindo em gritos nervosos (meu top 3: “Ronald Reagan? THE ACTOR?“, “THE LIBIANS!” e, claro, “ONE POINT TWENTY ONE GIGAWATTS?!!“).

O segundo trunfo é a máquina do tempo que ele inventou. De Volta Para o Futuro conseguiu a proeza de transformar um carro quase esquecido (o último DeLorean original foi produzido em 1982) em um sonho de consumo nerd. O que o carro original já tinha de futurista – a cor metálica, as asas que abrem pra cima como uma espaçonave – ganhou um esperto upgrade com a inclusão de fios, peças e gambiarras mil. Como diz o Doc, “se você vai construir uma máquina do tempo, por que não fazer isso com estilo?“. Gelo seco, rastros de fogo, um display de fácil uso para programar viagens temporais e um dispositivo chamado “capacitor de fluxo” completam o pacote. Não há muito blá-blá-blá pseudocientífico para explicar como a máquina funciona de fato. Sabe-se apenas que o tal capacitor de fluxo só opera com plutônio e que surgiu de uma visão que Doc teve há 30 anos quando caiu ao tentar pendurar um relógio no banheiro – olha o tema “relógio” aí de novo.

Quando Marty vai (ou volta) acidentalmente para 1955, dois problemões aparecem: como voltar para o futuro sem plutônio – para o qual ele pede ajuda a um Doc Brown trinta anos mais moço –, e como fazer com que sua mãe se apaixone por seu pai e não pelo próprio filho – Marty, como qualquer forasteiro numa cidade pequena, vira o “tchan” do lugar assim que dá as caras e arrebata o coração da mãe de uma maneira que passa longe do amor maternal.

O restante do elenco é irrepreensível como a dupla principal. Lea Thompson faz Lorraine, a mãe de Marty, que se revela muito mais “prafrentex” do que o filho ousaria imaginar. Crispin Glover é um George McFly perfeito, do cabelo engomado aos trejeitos acanhados. E Tom Wilson diverte e se diverte como Biff, o escrotão da cidade, rodeado de capangas e cheio de bordões bacanas (“What are you looking at, butthead?“).

Vale comentar ainda o disciplinário linha-dura da escola, o carecão Strickland (James Tolkan), para quem não basta desprezar os alunos de que não gosta: tem que humilhar gerações inteiras de antepassados (“Nenhum McFly conquistou nada até hoje na História de Hill Valley!“). E duas pontas curiosas: o músico Huey Lewis (que participa da trilha sonora com duas canções) é um membro do júri das bandas em 1985, e um ainda desconhecido Billy Zane faz um capanga de Biff em 1985.

A cidadezinha de Hill Valley também é praticamente um personagem e nenhum dos três filmes sai de suas fronteiras. É um barato perceber as transformações pelas quais a cidade passa através dos anos: se em 1955 o cinema exibe um faroeste com Ronald Reagan, em 1985 (quando Reagan é o presidente dos Estados Unidos) o mesmo cinema virou pornô (“Orgy American Style”, diz o letreiro). O prefeito de 1955 é um mendigo em 1985; o prefeito de 1985 é um faxineiro em 1955; e ambos usam o mesmíssimo slogan (“Progress is his middle name!“).

As próprias marcas que atravessam o filme – Texaco, Pepsi, Toyota, JVC e trocentas outras – ajudam a reforçar o contraste entre o presente e o passado, já que a maioria aparece nas duas épocas com logomarcas e identidades visuais bem diferentes. Fica a questão: era publicidade ou simples escolha da direção de arte? Talvez um pouco dos dois. O exemplo-mor é quando a jovem Lorraine lê o nome “Calvin Klein” na cueca de Marty e passa o filme inteiro chamando-o de Calvin. Pode até ser propaganda, mas é genial.

Outra brincadeira constante é o fato de Marty, 30 anos à frente do tempo, “pré-inventar” coisas que ainda não existem. Os principais são o skate e, claro, o rock’n’roll, em uma das minhas duas cenas musicais favoritas dos anos 80 (a outra é Ferris Bueller dublando Twist & Shout em Curtindo a Vida Adoidado). Marty lasca um Johnny B. Goode para uma platéia que, embora não soubesse, estava querendo justamente uma coisa daquelas – a piada do Marvin Berry ligando para um certo “primo Chuck” é clássica. Quando Marty tenta pré-inventar o heavy metal, no entanto, a recepção não é bem a mesma.

A trilha sonora, aliás, é espetacular. Alan Silvestri, colaborador habitual de Robert Zemeckis (de Tudo Por Uma Esmeralda até o recente Os Fantasmas de Scrooge, passando por Roger Rabbit, Forrest Gump e Náufrago), assina uma música-tema empolgante e grudenta, de fazer inveja a John Williams. Outras canções cumprem bem sua tarefa de simbolizar as diferentes épocas – “Power of Love” é anos 80 total, enquanto “Earth Angel” é um exemplo perfeito daquelas músicas comportadas dos anos 50 pré-rock’n’roll.

(Devo apontar que, durante essa cena no baile “Encanto Submarino” em que Marty toca guitarra, há o único detalhe que me incomoda em todo o filme. É um ruivo avulso que aparece do nada e tira Lorraine pra dançar no final, depois que George já havia nocauteado Biff e estava com a Lorraine no papo. Soa como um conflito bobo que só existe para alongar a tensão por mais alguns minutos, sem conexão com o resto do roteiro. Fim do protesto.)

O final de De Volta Para o Futuro dá ainda um destaque para a direção de arte e o figurino quando Marty viaja de volta para o futuro e encontra uma linha do tempo “ligeiramente” modificada. Notem, por exemplo, que o Twin Pines Mall (“Shopping Dois Pinheiros”) agora virou Lone Pine Mall (“Shopping Pinheiro Solitário”), depois que Marty atropelou um pinheiro com o DeLorean quando chegou a 1955. Ou a sala de estar dos McFly, que era um tanto cafona no início do filme e agora ganha um visual mais limpo e moderno. Ou as roupas que os personagens usam agora: George mudou de roupa social careta e cabelo ensebado para um estilo arrojado de um cinqüentão feliz. Em contrapartida, Biff não tem mais aquelas roupas de cafetão, com blusa laranja, calça xadrez; ele usa agora um pouco imponente agasalho Adidas verde-água. E ainda chama George de “Mister McFly”.

A cada ano que passa, minha lista de melhores filmes só engorda e eu suaria pra eliminar dezenas de títulos e montar, digamos, um top 50. Mas aqueles filmes “do coração”, que eu escolheria pra salvar de uma hecatombe nuclear se só coubesse meia dúzia na mochila, geralmente passam por critérios mais subjetivos. Pra mim acho que vai muito da vontade de participar daquele mundo. Eu queria matar aula pra cantar Twist & Shout para uma multidão. Adoraria passar semanas com minha banda de rock predileta com a desculpa oficial de escrever matéria para a Rolling Stone. E daria um dedo do pé pra pôr as mãos num DeLorean equipado com capacitor de fluxo e voltar no tempo para a Belo Horizonte dos anos 70, fazer sucesso ao violão tocando músicas do futuro e ver ao vivo e a cores aquilo que só conheço pelos causos de família.

Já que não dá, eu me satisfaço vendo De Volta Para o Futuro pela vigésima nona vez.

To be continued…

Leia também:
Crítica: De Volta Para o Futuro – Parte II

Título original:  Back to the Future
Direção: Robert Zemeckis
Produção:
Neil Canton e Bob Gale
Roteiro:
Robert Zemeckis e Bob Gale
Elenco:
Michael J. Fox, Christopher Lloyd, Lea Thompson, Crispin Glover, Thomas F. Wilson
Lançamento:
Julho de 1985
Nota: