A Espuma dos Dias

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MOCINHO CONHECE MOCINHA EM UMA FESTA de aniversário. Eles se apaixonam e vivem uma intensa história de amor, que é ameaçada quando ela é diagnosticada com uma doença respiratória. Parece um romance qualquer, mas não é. O aniversário é de um cachorro e o que ameaça o final feliz do casal é uma flor de lótus em um dos pulmões dela.

Histórias de amor improváveis são recorrentes na obra de Michel Gondry – que o diga o sonhador Stéphane (Gael García Bernal), de Sonhando Acordado, ou o melancólico Joel (Jim Carrey), de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Mas A Espuma dos Dias, o novo longa do diretor, é um pouco dos dois – e nenhum ao mesmo tempo.

Gondry é um diretor consistente à sua maneira. Ao longo de uma carreira que começou com Natureza quase humana, primeiro roteiro cinematográfico de Charlie Kaufman a ver a luz do dia, ele provou não só não ter medo do pouco convencional, mas que leva jeito pra coisa. Tanto que acabou dirigindo outra história kaufmaniana – a dos ex-namorados que se apagam da memória em um futuro não muito distante. E Gondry comprovou sua capacidade de criar as próprias tramas nada ortodoxas ao escrever (e dirigir, claro) Sonhando Acordado e Rebobine, por favor.

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O que une essa obra diversa – incluindo os videoclipes feitos para artistas como Massive Attack, Rolling Stones, Lenny Kravitz, White Stripes, Beck, Foo Fighters, Chemical Brothers e Björk – é a inventividade visual do diretor. E é aí que A Espuma dos Dias, um filme baseado em um livro de 1947, recebe o selo Michel Gondry de qualidade.

Em um mundo em que os sapatos têm vontade própria, as pessoas dançam sem sofrer os efeitos da gravidade e um piano é capaz de fazer coquetéis – isto é, se você tocar as notas certas – é que o diretor parece se sentir mais confortável. O livro de Boris Vian e o roteiro de Luc Bossi são a base para um verdadeiro espetáculo visual, do começo ao fim das mais de duas horas de filme.

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Nenhum detalhe parece passar despercebido à adaptação. As comidas são exóticas, os casamentos são disputados – literalmente, com uma corrida de carros dentro da igreja – e o pensamento filosófico de toda uma época passa por um tal Jean-Sol Partre. Nada disso requer explicação, assim como não é preciso dizer de onde vem a fortuna de Colin (Romain Duris) ou a devoção do amigo/advogado/mentor/cozinheiro/chofer Nicolas (Omar Sy).

As coisas são como são. O estranhamento inicial passa logo após o início dos títulos, o que não significa que toda a atmosfera do filme se torne confortável. Pelo contrário. Seu visual entre o estranho e o engraçado continua a surpreender até o final, acompanhando o clima da história. A apresentação dos personagens tem tons abertos e coloridos, a paixão ganha cores mais doces e a tristeza e preocupação pela doença de Chloé (Audrey Tautou, sempre docemente incrível) dão lugar a uma paleta sombria. Os sets refletem todo esse contexto – as paredes literalmente se fecham ao redor de Colin ao receber uma notícia ruim; as janelas são tomadas por teias de aranha e impedem a entrada de luz na medida que a história caminha para seu desfecho.

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É provável que A Espuma dos Dias não seja seu melhor, mas seja o filme que mais representa o trabalho cinematográfico de Michel Gondry. Não apenas porque o próprio diretor interpreta um dos personagens (o médico de Chloé), mas porque mostra um amadurecimento de suas ousadas escolhas visuais, característica marcante em toda a sua obra. Quem a acompanha de perto vai reconhecer, aqui e ali, esses traços – na mesa de cirurgia que lembra aquele clipe do Radiohead (não, não é de Lotus Flower), ou em uma doce cena sob lençóis que remete à protagonizada por Joel e Clementine (Kate Winslet) em Brilho Eterno.

Não é repetição. Mais de uma década depois de sua estreia no cinema, Gondry atingiu um status em que pode se autorreferenciar. Dono de uma filmografia que tem lá seus altos e baixos, o diretor chegou à maturidade como um dos mais respeitados de sua geração sem se acomodar. Dentro dos mundos loucos que cria, continua encontrando, filme após filme, formas excitantes e surpreendentes de contar histórias inesquecíveis. A Espuma dos Dias é uma deliciosamente trágica crônica de amor e um deleite para os olhos.

 

aespumadosdiascartazTítulo original: L’écume des jours
Direção: Michel Gondry
Roteiro: Luc Bossi
Elenco: Romain Duris, Audrey Tautou, Omar Sy, Michel Gondry
Lançamento: 2013
Nota:[quatroemeia]