Filme: Perdido em Marte

Texto publicado originalmente no blog Em Cartaz

Segundo trailer de Perdido em Marte

Marte, nosso planeta vizinho, onde a existência de organismos complexos, como eu, existe somente nas ficções científicas, sepultou carreiras promissoras e produções milionárias, como Missão Marte, Planeta Vermelho e John Carter. Dá para começar a entender por que investir 108 milhões de dólares no retorno, referente apenas a custos de produção, sem incluir os gastos de publicidade, deve ter agitado os corredores de Hollywood. Agora, visualize os risos incrédulos quando disseram que o capitão seria Ridley Scott, diretor experiente e competente, mas pé frio nas bilheterias e contestado por parte da crítica. E também não dá para esquecer a semelhança capital com Interestelar, a ficção-científica cabeça de Christopher Nolan que trazia Matt Damon como cof cof um astronauta abandonado em um planeta deserto. De tantas maneiras, Perdido em Marte parecia um desastre anunciado que chega a ser irônico o quanto é bom o filme.

Ironia que Marte entende bem. Veja: durante uma violenta tempestade de areia, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) é o único a sugerir esperar no abrigo em vez de abortar a missão prematuramente e retornar à órbita. Os membros da equipe não lhe dão ouvidos, especialmente depois de Mark ser atingido por destroços e ser declarado presumidamente morto. A NASA, através de seu porta-voz, dá as más-notícias à humanidade e a tripulação da Hermes amarga o luto, todos ignorantes do fato de que Mark está vivo e pondo em prática seus conhecimentos em botânica e ciência para permanecer vivo e esperar, esperar e esperar o sonhado resgate, que, conforme seus cálculos, acontecerá em 4 anos.

Filhote de Náufrago, Apollo 13 e Gravidade, a narrativa reparte-se, com equilíbrio e excelência, entre o esforço diário da sobrevivência e a elaboração de um plano de resgate, sem abdicar de ser cientificamente verossímil, ao menos aos olhos de um leigo que não gazeou as aulas de física (aguarde os chatos cientistas e textos de 10.000 palavras desdizendo a trama). De Marte à NASA e desta à Hermes e assim sucessivamente, Ridley Scott acerta no tempo dedicado a cada núcleo a fim de destacar a importância de cada personagem dentro de um esforço coletivo maior, e também evitar que a ação individual se torne maçante e repetitiva. Ajuda-lhe a presença de Jessica Chastain, Michael Peña, Sebastian Stan, Kate Mara, Jeff Daniels, Kristen Wiig, Chiwetel Ejiofor, Mackenzie Davis e Sean Benn, hábeis em conferir credibilidade a papéis coadjuvantes cujo tempo de cena poderia, em outra freguesia, justificar o casting de atores menos competentes.

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Esses núcleos ganham identidade própria através da boa fotografia de Darius Wolski: a NASA mostra-se uma agência política formal e metódica em que muito acontece ao mesmo tempo, mas não necessariamente relacionado ao resgate de Mark, elemento destacado através da larga profundidade de campo; a Hermes, a seu tempo, reutiliza elementos típicos do gênero para retratar o isolamento da equipe em uma espaçonave de ambientes amplos e corredores estreitos, porém extensos, efeito ressaltado através da profundidade de campo; e, embora Marte não fuja à regra do planeta inóspito e desértico enxergado através da paleta de cores rubra, Wolski retrata a minúscula proporção de Mark naquele cenário obtido com gruas altíssimas e o emprego da profundidade de campo. E se eu repeti ‘profundidade de campo’ três vezes (quatro agora) não é porque estou velho, mas para esclarecer como o 3D ajuda a potencializar essa característica da narrativa nesta que é, de fato, filmada em 3D (ou “Real 3D”), diferente daquelas conversões porcas do 2D que servem para cobrar ingressos mais caros e proporcionar experiências piores.

Mas seja 2D ou 3D, Perdido em Marte traz como grande trunfo a atuação de Matt Damon. Desde o instante em que desperta abandonado em Marte, o ator estabelece uma ligação forte com o público e conquista sua empatia através do senso de humor depreciativo, mas jamais inoportuno para acobertar uma enrascada desesperadora que exige dele iniciativa e força de espírito para não enlouquecer, ou talvez como consequência disto. É facílimo torcer por cada vitória de Mark porque Damon confere honestidade a todos os momentos: seja no carinho no broto de batata recém-plantado, que tem o mesmíssimo efeito narrativo das mãos de Russell Crowe acariciando a plantação de trigo em Gladiador, seja no olhar marejado na primeira comunicação com a Terra. De forma idêntica, sentimos as derrotas de Mark e nos afligimos com a esperança, às vezes reduzida, do resgate.

Por causa deste relacionamento tão autêntico entre espectador e protagonista, não há espaço para ironias ou azar, apenas emoção e sucesso. Assim como a descoberta de água em Marte transforma este em possível destino futuro da humanidade, Perdido em Marte prepara o caminho para Hollywood estabelecer-se no planeta vermelho. Desta vez, do jeito certo.