MUITOS SÃO OS DISPOSTOS A AFIRMAREM-SE DEFENSORES DA PLENA IGUALDADE e opositores às injustiças sociais; pouquíssimos, porém, são os dotados de culhões para deixarem a plenitude de conforto proporcionada pelas relações das quais fazem parte, capazes de indagá-las ou subvertê-las em sua esfera. É difícil. Nas relações de cadeias mais simples, cotidianas e mesmo singelas, reside a base que sustenta o mercantilismo estrutural, a extrema exploração humana e sua devida alienação – e parecemos entregues a um comodismo assustador como meio de não trairmos nossos “princípios” hierárquicos, sobretudo quando nosso nome é signatário de uma atraente herança social jamais extinta; aos que não, resta buscar conforto e ceder ao domínio, como caráter naturalmente determinado.
Na definição de realismo cinematográfico, segundo Ronald Bergan, no livro …ismos Para Entender o Cinema:
“O Realismo é um rótulo de conveniência anexado a uma infinidade
de filmes que reivindicam verossimilhança com a vida real. (…)
(…) de acordo com o roteirista italiano Cesare Zavattini, a realidade
nos filmes americanos é artificialmente filtrada.
O Realismo está preocupado com a vida de cidadãos comuns,
geralmente pessoas da classe baixa esquecidas pelo cinema mainstream.
No entanto, ao contrário do documentário, o Realismo não propõe
a representação fiel da realidade, mas uma honesta
abordagem artística do real. (…)
Para André Bazin, o cinema realista tem como elementos
principais os takes longos, profundidade de foco, pouca edição e,
quando possível, a utilização de atores não-profissionais
ou relativamente desconhecidos. (…)”
Ainda por Ronald Bergan, na mesma obra, mas tratando do movimento do naturalismo:
“O Naturalismo no cinema deriva da ficção literária do século XIX,
que apresentava personagens como vítimas das forças do ambiente. (…)
(…) o Naturalismo defendia que o destino do indivíduo não é determinado
por sua vontade, mas sobretudo pela hereditariedade e pelo
ambiente. (…)
Enquanto os realistas tentam retratar a vida como ela é,
o Naturalismo busca determinar “cientificamente” as forças
subjacentes às ações dos personagens, em geral
envolvidos em situações difíceis. (…)”
Que Horas Ela Volta?, realizada por Anna Muylaert, é uma obra firmemente determinada a seguir a natureza de ambos estes movimentos. Se, no âmbito da composição e caracterização das personagens e ambientação geral da trama, esta segue claramente as convenções realistas, é possível notar intenções ideológicas claramente voltadas ao naturalismo na construção do valor artístico integral da obra – sob as duas perspectivas, a ótica da pureza verossímil. Mais que isso: dentro das convenções de ambos os movimentos, um filme dotado de certeza quanto às suas intenções.
Assim, não contente em nos colocar sob a subjetividade do ponto de vista da protagonista Val a respeito dos acontecimentos da trama, o longa toma a liberdade de nos isolar completamente na casa da Família Paulistana, mesmo quando há ação externa – note como, quando esta deixa a casa em busca da filha em fuga, o quadro se mantém alheio ao além-portão -, bem como é a rotina daquela empregada doméstica – encontramos o mesmo alívio numa abertura de janela, ou num mero percurso de ônibus. Vivida brilhantemente por Regina Casé, Val entende seu próprio sentimento – a preocupação com Fabinho, a alegria nas realizações da filha -, enquanto contenta-se em aceitar a hierarquia à qual foi determinada, justamente por não compreender o seu caráter. O valor de seu presente não é o mesmo; apenas o de seu trabalho. Há distinção entre a parcela da “família” não-signatária.
“O trabalhador é estranho ao produto de sua atividade, que pertence a outro. Isto tem como consequência que o produto se consolida, perante o trabalhador, como um “poder independente”, e que, quanto mais o operário se esgota no trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo estranho, objetivo, que ele cria perante si, mais ele se torna pobre e menos o mundo interior lhe pertence.” – Karl Marx.
Numa estrutura familiar formalmente estabelecida porém emocionalmente instável, Val provém parte do equilíbrio: no aconselhamento materno com Fabinho, na própria realização das atividades domésticas. Como historicamente é função dos serviçais da grande burguesia, estes devem produzir, servir, mas sempre ao proprietário, de um produto ou relação ao qual jamais terão acesso – mesmo que vivam sob o mesmo teto. Não se come no prato que se lava.
“A consequência imediata desta alienação do trabalhador da vida genérica, da humanidade, é a alienação do homem pelo homem. Em geral, a proposição de que o homem se tornou estranho ao seu ser, enquanto pertencente a um gênero, significa que um homem permaneceu estranho a outro homem e que, igualmente, cada um deles se tornou estranho ao ser do homem. Esta alienação recíproca dos homens tem a manifestação mais tangível na relação operário-capitalista.” – Karl Marx.
O emprego frequente de pronomes possessivos – “nossos”, “deles” – com funções claras de separação de bens e propriedades torna-se um bordão no vocabulário de Val, há muito completamente cercada por uma realidade que doutrina a segregação clara, embora intrínseca, mesmo no sentido de alimentos ou espaços – o quarto de hóspedes, a piscina, o sorvete ou a mesa, bens de propriedade exclusiva, e excludente mesmo ao seu comum. Colegas de espécie, homens utilizam os ombros de outros homens para subirem degraus – mantendo-os no andar inferior. Mais uma vez: não se come no prato que se lava.
O choque, elemento-catarse: um indivíduo desconhecedor de tais doutrinas hierárquicas, que não se enxerga num degrau inferior de condição justamente por jamais ter vivido sob a tutela de tais estabelecimentos – embora eles estejam presentes, de formas distintas, nas mais variadas relações e esferas sociais.
Jéssica, a “filha da empregada”.
Responsável por desvelar a segregação na relação daquela casa apenas por não conhecer o manual cívico dos serviçais, afinal, não prestava algum tipo de serviço.
Desconhecia ainda, porém, um fato anteriormente estabelecido: embora estivesse plenamente apta a alcançar as mesmas condições dos mais abastados através de seus próprios esforços e méritos, Jéssica estava previamente ligada a um contrato de herança social que antecedia qualquer ação individual; estava conectada, graças às forças do ambiente e da hereditariedade, à uma condição de miséria e periferização hierárquica, ou seja, determinada a permanecer um degrau abaixo da burguesia dominadora da esfera que passava a habitar.
Desta forma, embora fosse hóspede de um “membro da família”, Jéssica não poderia hospedar-se no dormitório de hóspedes – com a licença da redundância intencional. Ainda que agisse com o mesmo civismo que um amigo de Fabinho, era inaceitável que frequentasse a mesma piscina que este. Mesmo estudando com maior disciplina que o filho da Família Paulistana, suscitaria espanto que tivesse a pretensão de ingressar numa universidade do mesmo nível que ele.
Conceitos de observação comum e constante, que Jéssica se recusa a compreender ou mesmo seguir – não por alienação, no caso; apenas motivada pela insatisfação diante das contradições. Excelente que o faça – o principal fruto de indignação da burguesia não é a diminuição de sua riqueza, mas a diminuição da disparidade entre seus bens e o das classes inferiores; a “invasão de espaços”, começando na irritação com a presença de serviçais numa sala principal ou piscina, posteriormente passando pela oposição às cotas para as mesmas universidades de seus filhos e pelo fenômeno da gentrificação territorial. Um dos principais geradores de conforto para a burguesia reside, então, na desigualdade social – e, individualmente, há membros seus que podem nem entender isto.
(É a pura disparidade de condições imposta desde os primeiros passos da jornada de cada indivíduo, enfim.)
Jéssica, apenas no ato de recusa à doutrina hierárquica imposta às suas relações, passa a dotar da prática desta compreensão – pena então que, possivelmente, ela seja aos poucos calada pelas forças sociais, do ambiente; do naturalismo real.
Não apenas ela. Quem compreende ainda mais isto é, claro, Que Horas Ela Volta?, uma admirável obra cinematográfica.
Deixa essa vassoura e vem depressa
Vem pro que te interessa
Ver teu mundo funcionar
Solta esse cabelo e te alegra
Quando é que a gente erra
vendo a vida melhorar?
Olha, o mundo inteiro está com pressa
Vem ter o que te interessa
Vem pra junto do gostar
Deita, conta tudo que te faça
uma pessoa mais sensata
Vem comigo levantar
Solta esse cabelo e te alegra
Quando é que a gente erra
vendo o mundo melhorar?
E larga, que essa trouxa não é sua
Vem cuidar da roupa tua
Tão bonita de usar
(Essa Trouxa Não é Sua; Eddie)