Crítica: Livrai-nos do Mal

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PARA OS ADMIRADORES DO CINEMA DE HORROR, 2014 não tem trazido as melhores notícias. Logo no início do ano, um desastroso misto de derivado e continuação da série Atividade Paranormal chegou às telas; semanas depois, veio O Herdeiro do Diabo, um projeto “original”, mas igualmente desastroso. Nos meses subsequentes, foram escassos os lançamentos do gênero nos cinemas brasileiros, até que, no forte período do verão norte-americano, voltamos a receber novidades, sendo as principais O Espelho – que dividiu opiniões – e A Marca do Medo – que, sem grandes atrativos, não recebeu muita atenção. Num panorama infeliz como este, a mais recente novidade do gênero, Livrai-nos do Mal, pode acabar soando ainda mais eficiente.

Habituado aos truques do gênero, Scott Derrickson (de O Exorcismo de Emily Rose e A Entidade) não economizou-os para seu novo projeto. Não que o diretor tenha a habilidade de um James Wan (de Sobrenatural e Invocação do Mal) para empregá-los, mas ainda assim, o resultado alcançado possui certos atrativos. Apropriando-se de uma trama que envolve o tradicional suspense místico-religioso, com assombrações e exorcismo, o roteiro de Paul Harris Boardman (Sem Evidências) e do próprio Derrickson – baseado no livro de Ralph Sarchie e Lisa Collier Cool – acompanha a jornada do policial Sarchie (Eric Bana, de O Grande Herói), um oficial corajoso, competente e cético, que inesperadamente passa a acompanhar um estranhíssimo caso envolvendo uma mulher claramente perturbada que atirou seu filho numa jaula do zoológico, um agressor domiciliar, um pintor suicida, um estranho homem que passa mensagens perturbadoras e uma série de ocorrências provocadoras de ainda maior perturbação, que conectam todas essas pessoas.

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A estrutura da produção inicialmente parece colocar-nos num procedural policial, quando acompanhamos o protagonista e seu parceiro Butler (Joel McHale, da série Community) empenhando tarefas policiais corriqueiras. E o acompanhamento fotográfico quase documental a estas ações reforça ainda mais a aproximação com esta estrutura – algo próximo do realizado em Marcados Para Morrer. Isto é parte da contextualização com o personagem principal e suas principais características, uma vez que estas são determinantes para o decorrer dos eventos de uma narrativa, sempre pautados na força da decisão de suas personagens. Também poderemos notar este recurso nas primeiras cenas em que Ralph Sarchie interage com sua família. São os instrumentos narrativos para apresentar o arquétipo que acompanharemos a partir dali – e, se possível, nos identificarmos com este: um policial durão e competente (o que é evidenciado por um diálogo expositivo logo no primeiro ato do projeto: “ele foi o policial que prendeu fulano!”, brada um vigia do zoológico), um homem cético, e um pai moderadamente ausente, em decorrência da excessiva dedicação ao trabalho.

No decorrer da trama, Ralph unirá forças com um representante religioso, jesuíta, chamado Mendoza (Édgar Ramírez, de A Hora Mais Escura), quem abre os olhos do policial para o caráter sobrenatural dos ocorridos. Veja bem: o cético oficial da lei, investigando linear e racionalmente um caso, e o religioso, que interpreta-o como um fenômeno de caráter espiritual. Mais um arquétipo é construído, desta vez, com relação à interação entre seus protagonistas – o cético e o crente, uma fórmula constantemente aproveitada na Arte, sobretudo em tramas deste estilo.

A partir deste estabelecimento, no entanto, é que surge a principal problemática da produção, uma vez que ela estabelece um caminho de evolução moral para Ralph Sarchie, com base nas morais religiosas de seu novo companheiro – para continuar realizando as investigações, por exemplo, o protagonista deve abandonar sua ideologia para aderir às crenças de Mendoza. Além de a concepção subjetiva moral não dever interferir no exercimento da lei, estas morais são conservadoras e, mais do que isso, um caminho de evolução pré-estabelecido baseado nesta linha prejudica a evolução de uma personagem como elemento narrativo.

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A deficiência do roteiro de Livrai-nos do Mal em construir suas personagens e desenvolvê-las com maior profundidade é, de certa forma, contornada – embora jamais compensada, deixemos claro – pelas interpretações de Eric Bana e Édgar Ramírez, que além de possuírem química em cena, conseguem reunir características fundamentais para as construções dos heróis do horror – a vulnerabilidade frente ao presenciar do desconhecido, mas a consequente notável coragem para enfrentá-lo, oferecendo segurança ao espectador. O protagonista aqui pode ser equiparado, de certa forma, à persona interpretada por Patrick Wilson em Sobrenatural e Invocação do Mal – e prossigo utilizando estas duas obras como exemplos por elas, definitivamente, terem tornado-se ícones para o Cinema de horror contemporâneo -, e não é defeito algum no trabalho de Bana observá-lo emulando certas características interpretativas de Wilson nos títulos supracitados. Mendoza, no entanto, subverte certas expectativas ao assumir uma personalidade sem muito pudor. A dupla formada é, sem dúvidas, interessante.

Para colocá-los em vulnerabilidade, no entanto, não há apenas o recurso do sobrenatural proporcionado pelo roteiro – a utilização de uma série de recursos narrativos é eficientíssima, especialmente no que diz respeito à sonoplastia da produção, que, bebendo na fonte de obras como Seven e O Silêncio dos Inocentes, utiliza-se ao máximo de ruídos para colocar-nos mais próximos das perturbações de seu protagonista.

O trabalho de Derricksson na geração do suspense, crescimento das expectativas e tensão não foge ao modelo estrutural seguido por muitos títulos do gênero, muito embora o diretor inteligentemente proponha algo diferente ao trabalhar mais com a exposição e com a criação da catarse, já nos momentos avançados da fita. Esta, desenvolve-se como os atos de um exorcismo e, como num toque de classe, ganha sua catarse com uma realização deste. Existe o espaço para a suspeita – e é essencial que o trabalho aparentemente rotineiro de Sarchie ganhe tempo de tela, para gerar a ligação entre os casos, um dos elementos mais interessantes do longa -, para a aproximação dos investigadores com cada manifestação do acontecido e, por fim, para o enfrentamento. Ainda que abra espaço para as conveniências, Livrai-nos do Mal executa todos os seus atos com a calma necessária – evitando o ultra-dinamismo tão presente em produções atuais do gênero -, o que é fundamental não apenas para amarrar todos os casos presentes no desenvolvimento da trama, mas, sobretudo, para que a catarse do enfrentamento seja mais proveitosa. Não há nada de muito especial nisto, sob certa perspectiva, e talvez este seja mesmo o grande trunfo de Livrai-nos do Mal – por mais que me frustre afirmá-lo.

Nota: [três]