Dente Canino

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A PARTIR DE HOJE SE INICIA O BUTECO NÔMADE, seu companheiro mensal na apresentação das cinematografias ao redor do mundo. Eu, Julyano Abnner, irei trazer críticas mostrando os filmes de destaque nos países fora do nosso eixo comercial.

A ideia é abrir essa vertente com novos cineastas (ou aqueles já conhecidos do público) que tenham um cuidado diferenciado com a linguagem e a estética em seus trabalhos. Tecerei análises pautadas nesses elementos com o intuito de agregar outras cinematografias para os leitores da coluna. Espero ajudar e desempenhar um bom trabalho nesses meses que se seguirão. Sejam todos bem vindos à nossa viagem pelo mundo do cinema.

O cinema grego vem revelando um novo rol de diretores nos últimos anos. Com temas e situações cada vez mais extremas envolvendo relações humanas, ele nos oferece experiências que perturbam e são difíceis de serem digeridas. Entre esses diretores está Giorgos Lanthimos.

Com uma carreira relativamente nova e apenas três longas lançados (Kinetta, Alpes e Dente canino), ele já se destaca entre os demais e se coloca como um dos grandes “jovens” do cinema europeu atual.

Dente Canino (ou Kynodontas) conta a história de uma família que tem três filhos e moram em uma casa afastada do centro urbano, na qual os jovens vivem em total isolamento, passando toda sua existência sem nenhum contato com o mundo exterior. Toda a base de educação e as normas a serem seguidas são propostas pelos pais, excluindo toda e qualquer influência do mundo lá fora. Enquanto o mundo externo se mostra impuro, os muros cercam os ideais de um pai preocupado com o desenvolvimento de seus filhos.

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A cada plano o diretor mostra e metaforiza o quanto o ser humano pode ser domesticável, levantando questões existencialistas para o espectador que se vê confuso no simulacro (realidade alternativa) criado pelo pai. Para arrematar a ideia de alienação/domesticação, os filhos são constantemente ensinados a substituir palavras por outras palavras com sentidos totalmente diferentes das palavras originais, como por exemplo:

(Filha) Mamãe o que é uma xoxota?

(Mãe) Onde você aprendeu essa palavra?

(Filha) Na caixa de um vídeo.

(Mãe) Uma xoxota é uma lâmpada grande. Exemplo: a xoxota apagou e o caminho ficou às escuras.

Entre as premissas levantadas, podemos notar a hipocrisia do pai, que tenta “proteger” os filhos da sociedade, mas que, ao mesmo tempo, os perverte para favorecer suas próprias convicções, coisa que vemos com frequência entre as nossas relações humanas. A inocência dos jovens que tem como referência apenas os pais é quebrada por eles próprios, ao incentivarem as duas meninas a descobrirem sua sexualidade uma com a outra para suprir essa carência, tanto sexual como de se relacionar. Há ainda o jovem que tem uma outra referência externa: a de uma contratada pelo pai. Esta aparece apenas pra resolver sua necessidade sexual. Contamos, além das críticas sobre a manipulação exercida pelos pais aos filhos, muito bem levantadas, com a manipulação das mídias televisivas e virtuais, chegando ao ápice de suas formas, principalmente no nosso tempo.

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Na fotografia vemos simbolismos como o uso recorrente do branco, relacionando a cor com a pureza que os pais tentam manter, em contraste com o vermelho do sangue que é pintado na tela por diversas vezes, se assemelhando muitas vezes a um sonho, beirando até o lirismo visual. Contraditoriamente, vemos as atuações quase robóticas dos atores, trazendo a sensação de clausura latente na qual os personagens se encontram em todo o desenvolvimento da trama.

Ainda quanto aos simbolismos, presenciamos desde referências ao gato de Schrödinger (experimento mental), até pequenas metáforas visuais que o diretor usa com inteligência para gerar maiores reflexões, tudo isso trabalhando em conjunto com a sensação de claustrofobia recorrente na ambientação do filme e a construção de mentiras e mitos que ajudam o pai a manter as aparências, além da crença que ele tem para si mesmo de que, em sua casa, reside uma família estruturada e feliz, tamanha a barbárie que ele submete os filhos no decorrer da trama.

Assim como outras novas escolas de cinema, o filme é fragmentado, beirando quase a não linearidade e deixando um tom de ambiguidade no ar. Dente Canino é uma porrada no estômago, daquelas que dilaceram e te marcam pra sempre.

Título original: Kynodontas
Direção: Giorgos Lanthimos
Produção: Giorgos Lanthimos, Yorgos Tsourgiannis
Roteiro: Efthymis Filippou, Giorgos Lanthimos
Elenco: Aggeliki Papoulia, Alexander Voulgaris, Anna Kalaitzidou, Christos Stergioglou, Hristos Passalis, Mary Tsoni, Michele Valley 
Lançamento: 18 de Maio de 2009 
Nota: [cinco]