Filme: Dheepan – Refúgio (Mostra de São Paulo 2015)

dheepan

O primeiro plano de Dheepan traz cadáveres de homens miseráveis sendo cobertos por folhas pelos sobreviventes do que parece ter sido uma batalha brutal. Essa única imagem é suficiente para compreendermos as motivações do personagem-título (Antonythasan), que, construindo uma família de fachada com a jovem Yalini (Srinivasan) e a pequena Illayaal (Vinasithamby), resolve fugir de seu Sri Lanka natal e se aventurar em uma perigosíssima viagem de barco Mar Mediterrâneo adentro a fim de tentar atravessar ilegalmente a fronteira e iniciar uma vida nova e cheia de oportunidades no Continente Europeu – uma vida que, para nós, surge insípida e bruta, mas para aqueles três seres humanos representa o conforto que jamais tiveram.

Ao chegar à periferia de Paris, Dheepan arruma emprego como zelador do conjunto habitacional em que mora, enquanto Yalini passa a trabalhar como doméstica na casa de um rapaz branco e inicialmente gentil que ela logo descobre ser o chefe de uma das gangues que brigam pelo controle do tráfico na região. Tentando manter a discrição, eles logo se transformam no centro das atenções quando Dheepan se envolve em um conflito com um grupo de delinquentes locais, descobrindo que a violência e a brutalidade não se restringem à selvageria de republiquetas subnutridas em guerra, mas se encontram em qualquer lugar onde haja ganância e disputas de poder – ou seja, em qualquer lugar em que haja seres humanos.

Há um risco, porém, no argumento desenvolvido pelo diretor, Jacques Audiard, que também assina o roteiro ao lado de Thomas Bidegain e Noé Debré: habitados majoritariamente por árabes, asiáticos e africanos, os prédios em que a trama se passa podem representar uma pequena amostra tanto da nossa espécie como um todo quanto das “minorias” estrangeiras que costumam ser hostilizadas justamente por representarem, na cabeça da Classe Média Branca Europeia, riscos à ordem e à segurança de seus países. Por outro lado, o roteiro é eficiente ao reconhecer na trajetória de Dheepan as raízes de seu comportamento reativo e, sim, selvagem em momentos específicos da projeção, concluindo em tons trágicos que a um homem criado como um animal falta estrutura para não agir como tal.

Traçando um arco dramático que em muito lembra aquele vivido pelo protagonista de seu intenso O Profeta, Audiard dirige Dheepan com a energia e o vigor que sua história e seu universo exigem: com a câmera sempre instável e uma fotografia granulada que reflete a precariedade das condições de seus personagens apesar da aparência de normalidade (mérito da diretora de fotografia Éponine Momenceau), o cineasta cria uma atmosfera tensa a instável que jamais nos deixa abaixar a guarda – e é o contraste com o tom fatalista que predomina a projeção que torna a cena em que Dheepan e Yalini seduzem-se mutuamente ainda mais bela. Afinal de contas, é também ao buscar conforto no corpo um do outro que aqueles seres se legitimam tanto como animais quanto como humanos.

Frustrando – e muito – apenas em uma espécie de epílogo que força a barra para tirar o espectador da sala de projeção se sentindo esperançoso e otimista (e não se engane: mesmo que aquilo não tenha acontecido “de fato”, a motivação de Audiard é a mesma), Dheepan pode não ser uma obra-prima digna da Palma de Ouro do Festival de Cannes, mas é sem dúvida alguma uma obra madura e extremamente relevante que, além de funcionar como estudo de personagem, comenta com lucidez um assunto extremamente contemporâneo: a postura bárbara, covarde e atroz que a maior parte das autoridades europeias tem assumido nas últimas décadas diante do problema da imigração.