Filme: As Confissões de Schmidt

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A transmissão da dramaticidade de forma tão natural, tão verossímil, sem cair no melodrama maniqueísta ao equilibrá-lo com certa comicidade cotidiana, marcou Alexander Payne (Sideways – Entre Umas e Outras) no cenário do Cinema nos últimos anos, como um dos melhores diretores de sua geração. O grande interesse do diretor está, especialmente, em narrar trajetórias de personagens estagnadas, melancólicas, e um evento específico e autêntico que motiva-as a realizar algo. Em As Confissões de Schmidt, não é diferente.

Num genial plano inicial, com a câmera praticamente estática, o diretor nos apresenta a mais uma destas personagens, o tal Warren Schmidt (Jack Nicholson, de Os Infiltrados), que observa o relógio, igualmente estático, em seu escritório, com a face da frustração. Sua melancolia é imprevisível, questionamo-nos se ela decorre pela vontade de sair daquele local e voltar para casa. Mas, quando descobrimos que ele está prestes a se aposentar, não sabemos se ele vem por conta da tristeza de deixar seu trabalho. Talvez, seja uma insatisfação integral, pelos dois motivos, como nos aponta sua trajetória até o final.

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Ao deixar seu emprego, Warren é festejado por todos com quem trabalhava, mas podemos notar a falsidade ali presente. Existe até uma certa alegria, implícita, nos outros funcionários, ao vê-lo deixando a empresa. No entanto, o grande momento desta sequência reside num discurso, feito por outro dos funcionários, definindo o velho Schmidt como um homem “admirado pela comunidade, com grandes e antigos amigos, que construiu uma família e dedicou anos de sua vida a uma grande empresa”, é justamente esta a visão pré-estabelecida que nós, e toda a sociedade, tecemos inicialmente sobre um homem como ele. Uma visão conservadora, de que alguém financeiramente estável, com uma família formada e mantendo um emprego por vários anos, é também um cidadão plenamente satisfeito – e o simples fato de um amigo defini-lo desta forma, denuncia que não há profundo conhecimento mútuo entre eles. Quando nos compenetramos no universo de Warren Schmidt, notamos o quão mentirosa é esta visão. E seu cineasta adora trabalhar com a desconstrução deste tipo de estereótipo, basta observar suas obras mais recentes, Os Descendentes e Nebraska.

Quando aposenta-se, sua esposa (June Squibb, recentemente indicada ao Oscar, justamente por Nebraska) apresenta-o a vários planos para serem realizados com seu tempo livre, e Warren passa a notar como, fora do trabalho, sua vida é extremamente vazia. Cada ato de sua esposa o incomoda, ele não encontra nada para fazer, o distanciamento de sua filha (Hope Davis, de Gigantes de Aço) é ainda mais perceptível, bem como a falta de amigos e, por fim, seu vazio intelectual. Um desespero calmo o vai tomando. Só era necessário um elemento que o fizesse buscar algum tipo de mudança, e ele chega, com a inesperada morte de sua esposa.

O protagonista encara a morte com suas fases habituais, desde a profunda depressão habitual – levando sua vida a uma estagnação ainda maior -, passando pelos arrependimentos e santificação da recém-falecida, e terminando numa descoberta – as cartas trocadas entre a esposa e um de seus velhos amigos -, que o motiva a esquecer a esposa, tentar superar a morte, Warren decide pegar seu trailer e partir numa viagem até a casa de sua filha, prestes a casar-se, para voltar a aproximar-se com ela. A única pessoa com quem o homem consegue realmente aproximar-se, na verdade, é com ele mesmo.

Na filmografia de Alexander Payne, o projeto com o qual este As Confissões de Schmidt se assemelha, é justamente seu mais recente, Nebraska. Ambos levam as grandes viradas na vida de seus protagonistas, justamente em sua velhice, quando as mudanças são mais difíceis, por conta de costumes já tão estabelecidos, intrincados em suas personalidades. O vazio toma conta de Warren assim como toma de Woody Grant – protagonista de Nebraska -, bem como a busca pela mudança parte por iniciativa pessoal de ambos. No entanto, suas trajetórias e personalidades são extremamente diferentes – Schmidt é um homem um pouco cínico, mais crítico, e parte sozinho, enquanto Grant é um velhinho doce e calado, e conta com a companhia de seu filho. Ainda assim, no caso de ambos, existe um resgate do próprio passado. No caminho, Schmidt passa pelo local de sua antiga casa, onde memórias são resgatadas, e lembra-se de quantos sonhos tinha, na infância, mas deixou sem realizar – quem sabe, ainda não há tempo, sr. Schmidt?.

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Todas as tramas narradas pelo diretor passam-se, justamente, em Nebraska, o que revela muito de pessoal em suas histórias, uma vez que o próprio cresceu lá. Mas, em As Confissões de Schmidt, é quando ele deixa este território que é capaz de perceber coisas diferentes de sua vida, e notar também o vazio desta. Ao conhecer a família do noivo de sua filha e o casal com quem janta no trailer, Warren vivencia experiências extremamente diferentes de seu costume e, com isto, descobre muito de sua própria personalidade. Por falar neste encontro com a família de seu futuro genro, talvez aí seja onde localizam-se os únicos pecados da obra, destoando da melancolia coesa construída, ao deixar-se levar pelo humor fácil, baseado nas personagens exóticas retratadas. Lembramo-nos, então, da velha máxima de, numa viagem, o percurso ser mais importante do que seu destino, e bem como acontece na estrutura da obra, também acontece com o próprio protagonista. Durante a trajetória em seu trailer, Warren descobre como foi egoísta, revisita o próprio passado, sente falta da esposa – e procura supri-la, mas note como ele dispensa uma segunda tentativa, após perceber que nunca deixaria de amá-la, independentemente de seus defeitos -, porém, quando finalmente chega ao encontro de sua filha, não consegue cumprir com os objetivos buscados e sofre decepções.

Transmitindo a melancolia de Warren Schmidt visualmente, através da fotografia fria e acinzentada, assinada por James Glennon (de Quem é Morto Sempre Aparece), As Confissões de Schmidt apresenta-nos a um homem que demora 66 anos para receber uma motivação e buscar o proveito da vida, buscar mudanças, buscando também a si mesmo. Um homem que, no final das contas, descobre também que é mais fácil confidenciar-se com alguém que sequer conhecemos – e a recíproca poderá ser bem mais verdadeira.

Obs.: Não sei se foi apenas uma impressão minha, mas creio que, numa sequência onde Schmidt passa em frente a um cinema, os letreiros do local anunciam o título “Sideways”, curiosamente, o próximo projeto do diretor.

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