Filme: As Sufragistas

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Dia desses ouvi de um crítico – o que torna o ato-falho ainda mais assustador – que determinado filme não era ficcional por ser baseado em incidentes reais. Ora, se um sujeito supostamente acostumado a refletir sobre a linguagem cinematográfica não consegue compreender a diferença básica entre ficção e documentário (mesmo que siga fatos e relatos à risca, uma obra em que atores reproduzem situações verídicas continua sendo uma representação 100% ficcional destas), o que esperar do espectador médio, obviamente mais vulnerável à manipulação da publicidade? Pois sempre que tiverem um longa “baseado em fatos reais” em mãos, as distribuidoras farão de tudo para nos convencer de que lhes devemos mais respeito ou mesmo uma admiração especial por isso.

Bobagem: independente de sua origem, qualquer filme precisa se provar no tempo em estiver sendo projetado na tela. O que os roteiristas costumam fazer nos casos das chamadas histórias “reais”, aliás, é partir de uma premissa inspirada em um evento verídico e, a partir dela, desenvolver uma trama própria que se valha de recursos dramáticos e convenções de gênero a fim de funcionar como narrativa ficcional – e é o quão convincente e natural o desenrolar dos fatos parece durante a projeção que vai determinar a qualidade do projeto; mesmo que (como costuma acontecer em muitos casos) todos os clichês e problemas da narrativa remetam com fidelidade aos fatos em que ela se baseia e que o que haja de mais “real” nela não passe depura invenção.

O que nos traz a este regular As Sufragistas, que faz uma belíssima reconstrução de época por um lado, mas soa forçadinho demais em suas necessidades dramáticas pelo outro.

Escrito por Abi Morgan (do ótimo Shame e do terrível A Dama de Ferro), o roteiro se passa em Londres na década de 20, quando um grupo de mulheres operárias se uniu para lutar pelo direito ao voto feminino. Inicialmente alheia ao movimento, a jovem Maud (Mulligan) aceita discursar no lugar da amiga Violet (Duff, ótima) e logo se vê frequentando as reuniões e assumindo responsabilidades ao lado das colegas – o que a leva a conquistar o respeito da líder Edith (Carter) e da “guru” Emmeline (Streep, em uma ponta), mas também a ser perseguida pela polícia comandada pelo rigoroso Inspetor Arthur Steed (Gleeson) e a comprar uma série de conflitos com o marido Sonny (Whishaw), que também é seu colega de lavanderia e passa a ameaçar seu contato com seu filho recém-nascido que, segundo as leis britânicas, “pertence” ao homem.

Como é fácil notar na descrição acima, a trama de As Sufragistas seria um prato cheio para um roteirista e um diretor preguiçoso que estivessem interessados apenas em arrancar o choro fácil do espectador – e por mais que as viradas do roteiro (que não revelarei, obviamente) sempre optem pela solução mais drástica para acentuar o tom de melodrama, é mérito da diretora Sarah Gavron que os principais picos emocionais da narrativa sejam abordados de maneira relativamente “pé no chão”, mantendo-se fiel ao arco inicial da protagonista (o que confere ainda mais peso a suas perdas e sacrifícios) e jamais apelando para recursos baratos como uma trilha sonora excessivamente dramática, uma câmera lenta no momento de uma despedida ou mesmo atuações uma nota acima.

E por falar em atuação, é em boa parte graças a Carey Mulligan que nós nos mantemos interessados no drama da protagonista durante toda a projeção: capaz de convencer como uma garota pobre e camponesa como nenhuma outra atriz jovem e bonita do “time A” de Hollywood, a atriz tem um olhar forte e determinado que se contrapõe à fragilidade de seu corpo magro e combina perfeitamente com a natureza combativa de sua personagem, além de uma capacidade de transmitir uma infinidade de sentimentos com um simples suspiro ou virada de pescoço que traz peso dramático às cenas mais sentimentais sem chegar nem perto do overacting – e nesse sentido, a cena em que Maud dança para entreter o filho pequeno é um dos momentos mais lindos que o Cinema produziu este ano.

Impondo a si mesma a necessidade comum em diretores pouco experientes de manter sua câmera em movimento o-tempo-todo (algo que pode até funcionar nas cenas de ação em que as sufragistas apanham da polícia, mas não em planos e contraplanos de diálogos), Gavron tem seu trabalho extremamente beneficiado pelos figurinos magníficos de Jane Petrie, que não só remetem ao tempo em que a trama se passa como também à condição humilde das personagens que enfoca através dos tecidos sutilmente desgastados e remendados, e a direção de arte igualmente eficiente de Alice NNormington, cujos cenários recriam de maneira física e palpável (se há retoques em CGI, eles são bem sutis) tanto as ruas e casas londrinas do início do século passado quanto o interior da imensa e inóspita lavanderia.

Infelizmente, a mesma realidade nem sempre está presente no roteiro, que além de fazer com que absolutamente tudo conspire contra a protagonista como em um filme de Thomas Vinterberg (com quem Mulligan trabalhou este ano no belo Longe Deste Insensato Mundo), mas sem a mesma competência dos trabalhos realizados pelo dinamarquês, ainda adiciona uma série de elementos-surpresa de última hora na narrativa a fim de manter o espectador sempre “tocado” emocionalmente – um recurso barato que qualquer espectador um pouco mais experiente reconhecerá como “falso” (independentemente, como já desenvolvi, de sua associação ou não com eventos reais que inspiraram a trama).

Trazendo um subtexto extremamente relevante e tristemente contemporâneo acerca da conspiração masculina para reprimir as causas feministas, diminuir a importância de suas dores e trazer para si a vitimização (a cena em que Sonny diz: “Você não imagina o que fizeram a mim e ao bebê” ao receber a esposa que acabou de passar dias na cadeia (!) faz uma crítica sutil e perfeita), As Sufragistas é um filme que tem o coração no lugar certo.

Mas que seria muito melhor se não sucumbisse a uma ou outra armadilha típica das adaptações cinematográficas de “histórias reais”.

22 de Dezembro de 2015.

As Sufragistas (Suffragette, Reino Unido, 2015). Dirigido por Sarah Gavron. Escrito por Abi Morgan. Com Carey Mulligan, Helena Bonham Carter, Ben Whishaw, Natalie Press, Anne-Marie Duff, Romola Garai, Brendan Gleeson, Samuel West, Adrian Schiller e Meryl Streep.