Filme: Anomalisa (2015)

Crítica publicada originalmente no blog CineViews, de João Marcos Flores.

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No avião rumo a Cincinnati, onde palestrará sobre seu best-seller focado em atendimento ao cliente, o escritor britânico Michael Stone (voz de David Thewlis) precisa lidar com um passageiro inconveniente que, sentado a seu lado, faz de tudo para transformar um toque acidental de mãos no início de uma conversa sobre sua vida privada. Já a caminho do hotel em que ficará hospedado, é o taxista quem o aborrece com a típica conversa fiada de anfitrião de cidade do interior: não, ele não está interessado em visitar o zoológico central, ou experimentar o famoso chili que ilustra até o panfleto que se encontrará sobre a escrivaninha de seu quarto – tudo o que Michael quer é chegar, comer alguma coisa, assistir a um filme, cumprir com sua obrigação no dia seguinte e voltar a Los Angeles, onde vive com a esposa e o filho pequeno.

Não que retornar a sua rotina diária lhe desperte grande entusiasmo – pelo contrário, executando até a tarefa mais corriqueira como se estivesse ligado no piloto automático, ele não se dá ao trabalho sequer de procurar “outro tipo” de loja de brinquedos para comprar o presente obrigatório do filho, levando o objeto mais parecido com um brinquedo infantil que encontra na sex shop que visita por acidente: uma boneca sexual japonesa que o atendente entediado lhe vende como “relíquia”. Mas se engana quem supuser que a chatice do dia-a-dia e o marasmo da repetição da vida são os únicos temas abordados por Charlie Kaufman em Anomalisa, sua primeira animação: com a mesma sensibilidade e ambição temática exibida em seus roteiros estrelados por atores de carne e osso (Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Sinédoque, Nova York, entre outros), o cineasta escreve e dirige (em parceria com Duke Johnson) uma reflexão profunda sobre sexo, solidão, regulamentos sociais e a subjetividade de nossas memórias e percepções.
Incapaz de se interessar, mas também de manifestar de maneira veemente o desconforto que as interações sociais forçadas lhe causam (ou, ao que parece, mesmo de se irritar o suficiente para querer fazê-lo), Michael está obviamente enfrentando um quadro depressivo que congelou sua habilidade de sentir o eu quer que seja; e ele sabe disso: ao agir de maneira egoísta e misógina em um encontro com uma ex-namorada e ser imediatamente rechaçado por isso, ele se defende dizendo “não estar bem psicologicamente” – e apenas nesses minutos iniciais, o roteiro de Kaufman já se encarrega de levantar contradições suficientes para longas discussões à mesa de um bar: por um lado, a doença enfrentada pelo protagonista o impede de rir, se encantar ou mesmo se enfurecer com a vida; por outro, esta se tornou tão engessada em sua burocracia disfarçada de ordem que qualquer indivíduo são que parar por alguns segundos para refletir acerca dos motivos que o movem a fazer o que faz um dia após do outro corre sérios riscos de se deprimir também.
A mesmice de Kaufman, aliás, não se encontra somente em procedimentos aborrecidos como aguardar na linha enquanto o atendente do hotel confirma um a um os ingredientes contidos no prato solicitado, mas principalmente nas pessoas, que, em seu filme, compartilham o mesmo rosto e a mesmíssima voz monótona (de Tom Noonan). A única exceção à regra ocorre com Lisa (Leigh), uma vizinha de quarto que Michael convida para um drink e cuja voz doce e suave o encanta – uma sacada de mestre por parte do cineasta que, mais uma vez, transforma a história simples contada por seu roteiro para discutir temas complexos e de natureza essencialmente existencial e filosófica: o que faz de alguém suficientemente “diferente” para nós a ponto de conquistar nossos sentimentos românticos? Como Michael não custará a perceber (apesar de suas constantes advertências), Lisa está longe de ser uma mulher intrigante e especial; mas o que, exatamente, disparou a fantasia idealizada do sujeito, levando-o a enxergar na nova parceira uma luz diferente daquela que ilumina todo o resto de sua vida?
Se tentasse oferecer uma resposta, Anomalisa não seria uma obra tão ambiciosa. Ao invés disso, Kaufman prefere propor uma equação óbvia, sim, mas que nós amamos esquecer: em meio à cíclica falta de sentido da vida, a única coisa que pode nos oferecer escape, consolo e mesmo um norte são as relações verdadeiras que cultivamos – o que, como Lisa pontua de forma certeira antes de ir para a cama com Michael, não precisa significar um “até que a morte nos separe” ou um “o tempo todo” (nem uma aliança no dedo, uma lua-de-mel, filhos e uma conta compartilhada), já que às vezes um “neste momento” é mais que suficiente (e a maneira gráfica com a qual a cena de sexo envolvendo o casal principal é abordada confere ainda mais humanidade àqueles indivíduos cujos corpos, humanos em sua imperfeição, buscam um ao outro com a reticência e o temor que uma vida inteira de opressão e fracassos os ensinou a abraçar).
O design dos personagens, vale dizer, é inteligentíssimo: grisalho e dono de olhos entristecidos e de uma barriga levemente protuberante, Michael é um homem bem sucedido financeiramente cujo físico não esconde o cansaço trazido pelo tempo; enquanto isso, as roupas fechadas e o corpo levemente acima do peso de Lisa combinam perfeitamente com o cabelo escorrido sobre o rosto, revelando uma mulher de autoestima baixa cuja primeira reação ao receber um elogio é recuar e temer ser alvo de uma piada de mau gosto – e a sobrancelha quase inexistente e os olhos parados dos rostos de todos os outros personagens lhes dão uma aparência sinistra que, em dois momentos específicos da produção (a palestra de Michael e a festa surpresa que o espera em sua volta para casa), são responsáveis por planos absolutamente assustadores que expressam de forma brilhante o sentimento de deslocamento vivenciado pelo protagonista.
É claro que os corpos de massinha que vemos na tela jamais nos convenceriam como seres humanos tridimensionais e dotados dos próprios medos e inseguranças caso a interpretação vocal criada pelo elenco não fosse minimamente convincente – um patamar que David Thewlis, Jennifer Jason Leigh e Tom Noonan ultrapassam por muito: dono de uma cadência vocal lenta e inflexões calculadas que parecem cuidar para que cada palavra seja pronunciada com a maior clareza possível (o que também lhe confere uma profunda melancolia), Michael consegue soar doce mesmo quando o conteúdo de suas palavras e ações tenta boicotar sua natureza amável. Da mesma maneira, a decisão de dar a Lisa a única voz feminina da narrativa não é inteligente apenas por tentar representar de modo sensorial o encantamento despertado no protagonista, mas principalmente por sugerir, através da composição magnífica de Leigh (naquele que talvez tenha sido o melhor ano de sua carreira), uma alma cheia de vitalidade e sentimento que encontra-se reprimida dentro de um casulo feito de timidez e rejeição. Por fim, Noonan torna “os outros” ainda mais opressores com sua voz monocórdia e quase robotizada em sua frieza.
Admirável tecnicamente por conseguir “passear” com a câmera através de cenários limitados como corredores estreitos e cômodos apertados, Kaufman cria, com o auxílio do diretor de fotografia Joe Passarelli e dos designers de produção John Joyce e Huy Vu, uma lógica quase expressionista ao transformar os cenários do longa em representações da prisão em que vivem seus personagens – e a sutileza com a qual a luz do longa passa a se tornar mais “quente” a partir do momento em que Lisa entra na vida de Michael é uma prova da inteligência e do cuidado dos realizadores.
Conseguindo a proeza de incluir uma cena de sonho que, ao contrário da grande maioria das sequências semelhantes, funciona narrativamente por representar de maneira visual a fobia do protagonista diante da necessidade cada vez maior que as pessoas têm de invadir a privacidade dos outros (um reflexo de nossa época povoada por stalkersdescontrolados e alimentados pela lógica distorcida das redes sociais), Anomalisa é um estudo do que é viver, trabalhar, interagir e se relacionar em nosso caótico, superficial e materialista século XXI.
Conhecido pela originalidade de seus roteiros, Kaufman jamais foi tão sensível e humano como neste seu novo trabalho.