Filme: Ponte dos Espiões (2015)

Crítica originalmente publicada no blog CineViews

Ponte dos Espiões Oscar 2016

..E lá se vão dez anos do lançamento de Munique, o último grande Spielberg.

Na última década, a carreira do diretor de Tubarão e E.T. enfrentou mais baixos do que altos: sim, As Aventuras de Tintim é uma delícia, mas Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, Cavalo de Guerra eLincoln não são apenas trabalhos medíocres, mas estão entre os piores filmes de uma carreira maravilhosa e extremamente bem sucedida que já dura quatro décadas e quase trinta longas-metragens – e o que é pior: os dois últimos ainda se juntam a A.I.: Inteligência Artificial e O Terminal ao sofrerem do mal que vem sabotando a carreira deste mestre e conterem mais açúcar que um caminhão pipa recheado de Coca-Cola.

A boa notícia é que Ponte dos Espiões é um filme muito mais sóbrio e confiante em sua narrativa, decepcionando apenas por um roteiro frouxo e arrastado que se distrai com uma série de subtramas desnecessárias e, desse modo, dilui o impacto que seu arco central deveria causar.

Trazendo os nomes de Ethan e Joel Coen como roteiristas (um fato curioso que já havia acontecido este ano no pavoroso Invencível e que me enche de curiosidade para saber até que ponto os consagrados cineastas realmente escreveram o roteiro ou apenas trabalharam apadrinhando e/ou “consertando” o projeto do inexperiente Matt Charman), o longa se inspira em acontecimentos reais ocorridos em 1957, no auge da Guerra Fria, e tem início com a captura do espião soviético Rudolf Abel (Rylance) em solo norte-americano. A fim de oferecer ao sujeito a “defesa justa” citada na Constituição, mas ao mesmo tempo negar-lhe qualquer chance real de absolvição, o FBI oferece o caso a James B. Donovan (Hanks), um advogado de seguros que jamais teve qualquer envolvimento com a política do país. O que o Governo não esperava é que Donovan, um idealista, trataria seu cliente com humanidade e justiça, comprando a luta por sua defesa sem abdicar de suas convicções “americanas”, ou que um cidadão comum como ele se tornaria peça fundamental na tumultuada negociação com o Governo Soviético envolvendo o piloto Francis Powers (Stowell), que caiu em solo russo após sofrer um acidente aéreo.

Do ponto de vista temático, de trama e de personagens, Spielberg bebe em Ponte dos Espiões na fonte de Frank Capra, personificando em Hanks (quem mais?) o ideal do homem de bem, trabalhador, bom pai, bom marido e fiel à moral e aos bons costumes – o que de certa forma encerra sua transformação ao longo das últimas décadas em um novo Henry Fonda ou Jimmy Stewart pré-Anthony Mann/Alfred Hitchcock. Mas se em filmes como A Mulher Faz o Homem (uma lindeza) e Adorável Vagabundo (um horror) os protagonistas “caprianos” eram cidadãos exemplares e mesmo heroicos por defenderem com unhas e dentes os ideais do Amerian way of life, a virtude de Donovan está em olhar para Abel simplesmente como um irmão de espécie, independente do hino que este canta, da bandeira que tremula ou mesmo do sistema econômico que pratica e defende.

É interessante notar, aliás, como Hanks, um ator experiente e sensível, compreende perfeitamente a persona que construiu para si, atuando de maneira cada vez mais discreta e minimalista por saber que, ei, ele é o Tom Hanks!, e isso significa que qualquer frase banal que saia dos seus lábios ganha uma relevância imediata – e se a decisão de mantê-lo gripado durante boa parte da projeção, perfeita por humanizá-lo ainda mais, deve ter vindo do roteiro ou da direção, detalhes como a risada que o protagonista dá de si mesmo ao perceber que determinada mensagem é longa demais são toques de gênio obviamente acrescentados pelo ator. Da mesma maneira, o britânico Mark Rylance encarna Abel de maneira introspectiva e melancólica, jamais se permitindo um momento de maior explosão (a “one scene”, como os americanos dizem) e deixando que seu rosto fundo, seu olhar cansado, sua postura frágil e sua inflexão lenta e triste componham seu personagem, que, como o de Hanks, mantém-se na mesma nota até o final da projeção (o que não deixa de ser um problema).

Mais uma vez trabalhando com o diretor de fotografia Janusz Kaminski, com quem tem parceria desde A Lista de Schindler, Spielberg volta a tropeçar no mesmo degrau estético que recentemente derrubou Lincoln: o filme é lindo de morrer, trazendo inúmeros planos e enquadramentos que eu assistiria em loop eterno sem o menor problema (há uma cena em que vemos Donovan deixar o escritório do juiz e caminhar à noite sob uma forte chuva que confere aos carros antigos e ao chão de paralelepípedos contornos irregulares de luz em meio à escuridão que chega a arrepiar de tão bela em seu contraste noir), mas em nenhum momento apresenta uma iluminação minimamente verossímil, conscientemente sacrificando a realidade diegética em prol do deleite estético como um fim em si mesmo – e para piorar, a abordagem ainda resulta em uma estética extremamente escura mesmo se compararmos aos grandes trabalhos de Gordon Willis, o mestre da escuridão.

Felizmente, essa contradição entre forma e funcionalidade é um problema que a montagem de Michael Kahn (este já está com Spielberg desde 1941 – Uma Guerra Muito Louca) não apresenta de forma alguma, já que raccords como aquele em que o “todos de pé!” do tribunal termina seu movimento através de um grupo de crianças em uma sala de aula não são só visualmente elegantes, como conferem à narrativa uma fluidez invejável. E se as diferentes formas com que os passageiros do metrô olham para o protagonista em momentos distintos da trama criam uma rima simples, mas extremamente funcional ao reforçar a ideia de um arco que se fecha, o corte do slogan hipócrita “one nation under God” para a destruição causada pelas bombas lançadas pelos EUA em Hiroshima e Nagasaki pode até soar óbvia, mas transmite uma mensagem direta sem recorrer a diálogos expositivos.

O que nos traz ao roteiro de Charman (e dos irmãos Coen?), que, se estendendo por quase duas horas e meia (quem me conhece sabe que não tenho problema algum com filmes que duram até muito mais que isso, desde que cada minuto de projeção seja justificado pela narrativa), não se contenta em focar na negociação pela troca de Abel por Francis e decide contar também a história paralela de um jovem estudante que se perde nos arredores do muro de Berlim e é capturado como espião – uma subtrama que deveria ser cortada mesmo que o sujeito tenha desempenhado um papel importante na história em que o longa se inspira -, além de tomar decisões quase amadoras como adicionar elementos que precisariam ser vistos no início da projeção apenas em seu terceiro ato (a marmelada da esposa) e recorrer a clichês bobos (a previsão precisa de Donovan).

Historicamente interessante ao expor tanto o tratamento dado aos espiões norte-americanos por seu Governo, que colhia os frutos de seu trabalho quando este era bem sucedido, mas “lavava as mãos” a fim de evitar problemas diplomáticos maiores quando fracassava, quanto certas rachaduras existentes dentro da própria URSS, como a mágoa alimentada pela Alemanha Oriental diante de uma Rússia que a destruíra por completo ao final da Segunda Guerra Mundial, mas se recusava a disponibilizar recursos para reconstruí-la (e para um leigo em política internacional até mesmo o desenvolvimento do conceito de “troca justa” em que a diferença entre o tempo de prisão de dois espiões capturados por países adversários pode representar a diferença entre um que já “falou demais” e outro que ainda carrega informações preciosas é extremamente revelador), Ponte dos Espiões nos mantém envolvidos do início ao fim, mesmo que, aqui e ali, reconheçamos suas falhas, como a de enfiar um epílogo pavoroso após uma cena belíssima que, ambientada na ponte do título, praticamente implorava para representar o desfecho da narrativa.

De qualquer forma, o longa já é (mais por falta de opção do que por qualquer outra coisa, é verdade) um dos melhores trabalhos dirigidos por Spielberg nesta terrível década de sua carreira.

Ou seria mais otimista acreditar que este não passa de um longa eficiente, mas modesto, que ajudou a iniciar uma das fases mais admiráveis de sua filmografia?

É, acho que prefiro acreditar nessa opção.

Observação: Ponte dos Espiões é o primeiro filme dirigido por Steven Spielberg desde A Cor Púrpura a não contar com uma trilha sonora composta por John Williams, que abandonou o projeto devido a um problema de saúde. Em seu lugar, Thomas Newman fez um trabalho suficientemente discreto para não ser citado na crítica nem para o bem nem para o mal.