edificio alvorada

Quarentena de Contos: Colorir no Chão o Vermelho – Ato 1

PARTE II

 

Hoje é 30 de março e já tem duas semanas que eu não consigo dormir. Eu não sei quando foi a última vez que tive uma alimentação decente. Se eu não durmo, eu não acordo. Se eu não acordo, não tenho mais aquele tesão matinal – a única hora do dia em que meu pau realmente fica duro de verdade. Tesão sincero. Efeito físico indomável. Prazer quase certo. Sem dormir, não adianta mais recorrer para o pack de vídeos e fotos da Alexa Pearl grávida, que me custou uma fortuna e achava que seria uma espécie de viagra digital permanente.

Sem dormir ou me alimentar, eu não sei exatamente o que é real ou alucinação. Não sei exatamente se estamos sendo todos enganados por uma conspiração ou se vamos todos morrer. Talvez eu já esteja morto e estou vivendo no purgatório, aguardando a decisão se meu destino é o paraíso ou o inferno. Talvez eu já esteja no inferno. Eu estou cheirando como se estivesse podre, pelo menos. Talvez tomar um banho seja meu passe para o paraíso. 

De vez em quando escuto barulhos no corredor do prédio em que estou vivendo os últimos dias de vida nesse apocalipse. São meus vizinhos seguindo com suas vidas desprovidas de brilho e valor. Ignorando que o mundo está acabando.

Isso me dá forças para levantar da cadeira e sair da frente da tela do meu computador. Dou uma corrida para ver os vizinhos do 305 deixando seu apartamento felizes e sem preocupações. Se meus olhos fossem metralhadoras, essa seria uma execução militar perfeita. Vejo a tradicional família mineira classe-média branca com o papai feliz com seu carro zero, mamãe (gostosa) dirigindo o antigo veículo do papai, o filho adolescente que disfarça que gosta de rola, a filha universitária que eu gostaria de comer antes do fim do mundo, e a porra do rato Yorkshire que fica me irritando o dia inteiro com uma latição infernal.  

Paredes finas me fazem saber mais do que gostaria sobre essa família. Aliás, eu não quero ter esse tipo de intimidade com ninguém vivo ou morto. Desde o som insuportável do moleque chamado Carlinhos cantando música da tal Pablo Vittar quanto está sozinho em casa; até os gemidos nada discretos da esposa Michelle pegando duro nos serviços domésticos com suas visitas masculinas secretas (um dia ainda vou descobrir se ela precisa da minha ajuda também). Tem também os gemidos abafados e o barulho da cama do quarto batendo na parede e fazendo minha sala parecer mais agitada. Imagino que seja a universitária, que se chama Flávia ou Fernanda, foda-se o nome, quando recebe a visita do namoradinho preto com cara de comunista – que tanto o pai quanto a mãe odeiam. Além de tudo são uns racistas esses filhos da puta hipócritas. 

Às vezes acho que o tal do Jair, o pai da família, é um corno manso que gosta de lamber porra escorrendo da buceta da esposa e sente tesão ao saber que ela deu pra alguém. Se eles não tivessem votado 17 nas urnas, me ofereceria para realizar uma fantasia cuckold desse otário. Aposto que ter um ex-cantor de sucesso comendo a esposa ia dar um tesão filho da puta nesse sommelier de mamadeira de Yakult. E claro, eu aproveitaria para comer a filha deles também. Seria uma terapia do amor familiar sem precedentes para esses pervertidos escrotos. Eles nem se importariam se eu jogasse a porra do cachorro pela janela. Porém… o Jair é um cuzão e duvido que ele saiba que é corno. 

Além da tradicional família brasileira da propaganda de Margarina, logo percebo que os outros vizinhos também estão se preparando para sair e trabalhar. Mesmo morando no terceiro andar, dá para ouvir muito bem o que as pessoas dizem umas para as outras nas escadas e hall principal. Eles não ouviram a parte do “Fica em casa”. Eles são burros. Sinto um arrepio na espinha de tanta raiva. Com o que aconteceu aqui, eles deveriam ter entendido que isso não é “histeria” ou “uma gripezinha”.

Reconheço a voz do pastor filho da puta que mora em cima do meu apartamento. Eu odeio esse velho chato moralista do saco murcho. Perdi o sono várias vezes por causa do barulho desgraçado que eles fazem ali em cima. Antes fosse movendo os móveis ou pisando firme: eu escuto o desgraçado comendo a esposa. Jurava que crente não metia, mas esse empresário do ramo religioso parece a porra de um estouro de javali fazendo o prédio balançar como se fosse o Mineirão na final da Libertadores de 2013. Tenho certeza que um dia ele vai ter um ataque cardíaco e a esposa dele, com seus 25, 30 anos será acusada de assassinato por um paramédico do SAMU. Mas podia ser pior. Melhor que saber que a vida sexual do pastor crente é mais agitada que a de um ex-vocalista de banda de rock, é não ser torturado com um culto no lar do desgraçado e seu rebanho. 

Lá de baixo, o pastor está destilando aquele veneno verbal e ódio que deixaria Jesus pronto para ressuscitar puto pra caralho e dar um esporro nesses idiotas que deturparam seus ensinamentos. Jesus não apoiaria tortura, seus estelionatários da fé. “É um absurdo que tenham proibido os cultos. Onde é que o fiel vai buscar a palavra de Deus nesse momento? Quem tem Jesus no coração, não pega coronavirus.”

“Essa imprensa vai acabar com o país, pastor”, responde o corno manso ignorante com decoração vistosa na sua testa polida com o sêmen do último comedor que deitou na sua cama. 

O pastor concorda e diz algo que quase me faz engasgar com minha própria saliva e curiosidade de ouvir escondido a conversa alheia. “Pois durante esta noite irei receber alguns fiéis no salão de festas do prédio para um pequeno culto. Vamos receber 100 irmãos e você, querido irmão Jair, está mais que convidado para vir acompanhado da sua esposa e filhos. Todos os vizinhos já foram convidados e estão sabendo do culto”. 

Porra nenhuma. Tenho vontade de abrir a porta e berrar que ninguém me avisou nada e que quero mais é que esses gados do pastor rezem na puta que os pariu, só que estou travado de tanto ódio e um sentimento que descubro ser nada mais que puro medo. Vamos todos morrer por causa de Jesus e eu nem sou cristão. Eu quero matar esses desgraçados. O Estado é laico. A morte também deveria ser, porra. 

Começo a considerar iniciar uma meditação Ho’Oponopono que aprendi com a minha ex-esposa (embora eu não sentisse porra nenhuma, não queria ser perdoado por arrombado nenhum, odeio todos esses filhos da puta querendo cometer um genocídio no Brasil, mas sou grato por não ser como eles), mas minha intenção é quebrada no momento em que ouço a voz peçonhenta de uma terceira pessoa na conversa do pastor com o corno. 

“Não podemos deixar de fazer uma oração em homenagem ao nosso querido Seu Lalau, que pegou uma pneumonia e morreu. Coitadinho”, lembra a velha aposentada pudica que mora no 2º andar e vive bajulando o pastor. Talvez ela seja a dona da única buceta que eu não entraria nem se me pagassem. E eu já entrei dentro de coisa pior por dinheiro. Essa velha filha da puta torce o nariz toda a vez que me vê. Eu até entenderia se fosse hoje por causa do fedor catinguento de cu que meu corpo exala, mas é como se a minha existência incomodasse as narinas dessa uva passas bípede rastejante.

O Seu Lalau era um senhorzinho reservado que todo mundo tinha a maior simpatia. Porra. Até eu ia com a cara do Matusalém. Tudo bem que nunca fui no apartamento dele conversar ou perguntar se estava tudo bem, se ele precisava de alguma coisa. Mas eu gostava dele. O Seu Lalau morava no apartamento ao lado do pastor, no quarto andar. Imagino o quanto esse velho ficava puto com as maratonas sexuais no apartamento ao lado. Ou vai ver ele ficava na bronha curtindo. Velhos são uns tarados que todo mundo ignora ou acha fofinho – pelo menos até virar um Sílvio Santos sem noção da vida. Aí nesse caso, deixa de ser fofinho e vira filho da puta mesmo. 

De qualquer forma, nunca conversamos muito fora os encontros ocasionais no hall ou na área verde do prédio. Lembro de uma vez em que estava fumando um baseado no banquinho, foi bem logo que me mudei uns dois anos atrás, e ele chegou se apresentando e lamentando que tinha anos desde que parara de fumar. Ofereci um trago para ele, que não recusou. Achei que seria engraçado deixar o velho chapado e nunca tive a chance de repetir isso. Nunca mais terei essa chance. Semana passada ele foi encontrado morto no seu apartamento. 

Fiquei desconcertado quando vi os socorristas chegando com máscaras e roupas especiais de cientistas da NASA. Eu estava um pouco alto na hora, mas aquilo ali provavelmente virou uma viagem ruim permanente, que só aumentou meu cagaço e preocupação com esse micróbio do caralho. Os médicos vieram perguntar se o Seu Lalau recebia visitas, se costumava sair muito do prédio, e eu disse que nunca nem tinha visto o velho. Vai que o desgraçado morreu por causa da minha maconha que ativou alguma doença nele. Não podia deixar ninguém saber disso. 

Um deles me reconheceu. O putinho devia ter uns 20, 25 anos e disse que a mãe dele adorava a minha banda. “Ela tem até mesmo uma foto com você em um dos shows que ela foi! Como é o seu nome mesmo?”, e eu respondi um pouco constrangido. Pouco depois ele já estava fazendo uma selfie e dizendo que a mãe não iria acreditar nisso. Eu evitei falar qualquer coisa que deixasse aquele médico puto o suficiente para perceber que eu estava em outra dimensão. Até onde eu sei, se a mãe dele tirou foto comigo durante um show, eu provavelmente devo ter comido ela. Ou alguém comeu. 

Então, o puto simplesmente chegou e cochichou no meu ouvido. “Olha, é bem provável que o seu vizinho tenha sido contaminado pelo coronavírus. As notícias que você assiste na TV estão bem longe da realidade, ok? Fica em casa, se cuida e não se arrisque. Vamos sofrer muito. Especialmente os velhinhos. Não é uma gripezinha” E então foi embora. 

Ninguém confirmou a morte dele como coronavírus, obviamente. Ninguém quis falar em voz alta que o velho estava no evento “democrático” que aconteceu no dia 15 em todo o Brasil. Afinal, o prédio todo vestia amarelo naquele domingo e todos foram juntos gritar contra o comunismo na Praça da Liberdade. Amnésia seletiva. Hipócritas. Psicopatas geriátricos. Matadores de velhinhos. 

“Minha filha, Geisi, bom dia! Não vamos esquecer do nosso irmão querido. Ele cumpriu seus trabalhos como um militar que defendeu o nosso país e terá uma homenagem hoje sim. Vamos todos dar as mãos essa noite para comemorar a vida do nosso irmão”, respondeu o pastor seboso com apetite sexual de um peixe guppy. 

“Falando nisso, será que alguém já veio retirar as armas dele do apartamento? É um perigo ter um apartamento vazio com todas aquelas armas!”, perguntou a aposentada que deve ter dado pela última vez antes do bug do milênio para algum morador de rua desesperado por sexo.

“Não se preocupe, minha filha! O nosso prédio é muito bem protegido pelo segurança Ciro. Lembram daquela vez em que ele acabou com aquela algazarra dos comunistas petistas desocupados que vieram fazer baderna aqui na frente? Mandou todo mundo dormir e ficou muito bravo”, riu o pastor Eduardo. Eu não morava aqui ainda, mas escuto essa história há dois anos em todas as reuniões do condomínio. “O Senhor protege o nosso lar e estamos seguros aqui, minha filha.”

Jair, o corno, confirma o horário do culto e se despede para seguir com a sua rotina normal. O pastor responde: “Será a partir das 18h, meu filho. Não se esqueça de levar a família, inclusive a sua adorável esposa”.

Tenho certeza que esse pastor filho da puta quer traçar a esposa desse idiota. Nunca consegui identificar os caras que visitam o apartamento do meu vizinho quando ele não está lá, mas parecem ser todos magrelos. Acho que ela é adepta da teoria que todo magrelo é pauzudo. Minha ex-esposa vivia dizendo isso e que tirou a sorte grande comigo porque deixei de ser magrelo, mas continuei pauzudo. 

De qualquer forma, que porra adianta ser pauzudo? Volto a ficar preocupado com meu tesão inconstante nesses dias e não me convenço que é efeito do estresse ou da preocupação. Me imagino passando por um vexame tentando comer a minha vizinha na frente desse corno. Imagino meu constrangimento aumentando ainda mais quando não conseguisse comer nem a universitária gostosa que eles criaram e cuidaram durante todos esses anos. Nem o desgosto de imaginar a reação do Jair assistindo a filha dele transando com um cinquentão como eu, me deixa com tesão.

Fico frustrado e deprimido com esse pensamento, mas então me lembro que a Marina combinou de me visitar hoje e ela tem uma boca mágica capaz de fazer um homem esquecer de todos os seus problemas. E ela só precisa de um pouco de saliva para usar seu truque.