Xaveco de Buteco: Conto #9 Sonhos

Vi um sonho assim.

Caminhava assustado pelo corredor estreito do trem. Tinha pouco menos de 8 anos e era a primeira vez que embarcava num veículo daquele. Estranhamente, estava sozinho. Sozinho e sem malas. Passava ressabiado pelos olhares de julgamento dos demais passageiros. Usava uma roupa de brincar, enquanto eles trajavam vestimentas que eu só conhecia da novela das 6. Os homens portavam chapéus, paletós, coletes, relógios de bolso, bengalas e monóculos. As mulheres se abanavam com leques, para afastar o calor intenso que as torturava debaixo de tanto pano. Não fazia ideia de qual era o destino do trem, mas sabia em qual cabine deveria me acomodar. Abri a porta de correr com extrema delicadeza, o que não a impediu de ranger estridentemente, causando uma leve sensação de constrangimento. Lá dentro, encontrava-se apenas uma garota desacompanhada, também de seus 7 ou 8 anos. Com um lindo vestido verde-claro, repleto de bordados em branco; ela segurava uma sombrinha das mesmas cores. Jamais vira um cabelo tão belo, com caracóis tão bem delineados. A menina sorriu. Nada falou, mas sorriu. Não perguntei o nome dela, nem consigo dizer por qual razão. Eu também nada disse, mas estava apaixonado, e tinha plena consciência de que jamais esqueceria aquele rosto angelical, divinal. No peito, um brutal aperto me dizia que aquele amor era impossível, pois vivíamos em tempos distintos e não poderíamos descer na mesma estação. Cruzei os dedos das mãos, arquei os ombros para a frente, como tinha mania de fazer, e olhei fixamente para a minha amada, na intenção de levar para o infinito aquela paz que jamais havia experimentado.

 

Vi um sonho assim.

O carro fazia muito barulho e trepidava constantemente, em virtude do estado da estrada de terra. Ainda era dia, mas o céu, tomado de nuvens cinzas, quase negras, escurecia numa velocidade anormal. No fim do trajeto surgiu uma espécie de estacionamento, com chão de pedregulhos e cercado por uma mata fechada. Do lado direito, uma velha cabana de madeira aguardava a chegada dos visitantes. Ao descermos do veículo, a primeira coisa que notamos foi que os demais automóveis parados no local não eram de nossa época. Os carros ali presentes datavam do fim dos anos 70 ou algo assim. Recordávamos deles como já sendo velhos lá na nossa longínqua infância. As placas também tinham características extintas há décadas. Enquanto tentávamos compreender o cenário, o céu escureceu mais um tanto e nós precisamos entrar na cabana. Não havia ninguém no interior do casebre. A decoração também relembrava muito os sítios e roças que frequentávamos quando crianças. Móveis sem combinação alguma, um enorme pano laranja jogado sobre o sofá rasgado, uma geladeira azul na cozinha, quadros desbotados na sala com as faces de uma família, uma TV de 14 polegadas na estante toda torta, dentre outras coisas. Fomos para o quarto, trocamos de roupa e nos deitamos numa enorme cama, esperando pela nossa missão. Não se passou muito tempo, quase nada. Ainda era dia, mas o preto já tomara conta do firmamento. Começamos a ouvir um barulho sinistro, que parecia uma mistura de sussurros com trovões. As janelas de madeira batiam com violência, quase se destrancando. A porta também parecia estar sendo forçada. Os sussurros agora eram vozes, que chamavam por nós em tom diabólico. Estávamos assombrados, mas o objetivo precisava ser cumprido. O choque contra as paredes aumentava e a casa parecia envolta numa embalagem de opressão sombria. O teto se abriu. Tudo foi pelos ares, sugado por uma gigantesca máscara rubra que surgira do céu, e nos ameaçava com frases de ódio. Era o rosto do demônio, que vinha para trazer destruição em tempestade de fogo. Segurei firme na mão de minha noiva e iniciamos uma oração que sabíamos ser poderosa. O diabo estava cada vez mais baixo. Cada vez mais próximo. E nós não deixaríamos por menos.

Cena do filme Sonhos (Yume, Akira Kurosawa, 1990)

Vi um sonho assim.

Estava deitado, com o corpo virado para cima e os olhos abertos, mas o quarto se guardava num breu completo. Não conseguia me mexer e devido à posição em que me encontrava, comecei a sentir uma falta de ar intensa. Ouvi uma voz imponente tentando me dizer algo, porém, aos meus ouvidos, as palavras soavam ininteligíveis. Claro, aquilo só poderia ser um pesadelo, paralisia do sono ou coisa do tipo. Forcei meu tronco estático e minha mente assustada, tentando despertar. O sofrimento era tamanho, que cheguei a questionar a ideia de que estaria realmente dormindo. Cogitei estar maluco ou sendo alvo de magia negra. De tanto me debater figurativamente, acordei. Estava deitado, com o corpo virado para cima e os olhos abertos, mas o quarto se guardava num breu completo. Não conseguia me mexer e devido à posição em que me encontrava, comecei a sentir uma falta de ar intensa. Ouvi uma voz imponente tentando me dizer algo, porém, aos meus ouvidos, as palavras soavam ininteligíveis. OK! Naquele momento eu tive certeza, estava acordado e totalmente maluco. Não havia qualquer possibilidade de estar tendo o mesmo sonho de forma consecutiva. Se bem que ainda podia ser magia negra ou vodu, sei lá. Forcei meu tronco estático e minha mente assustada, tentando fazer algum barulho que chamasse a atenção de alguém no quarto ao lado. De tanto me debater figurativamente, acordei. Estava deitado, com o corpo virado para cima e os olhos abertos, mas o quarto se guardava num breu completo. Não conseguia me mexer e devido à posição em que me encontrava, comecei a sentir uma falta de ar intensa. Mentalmente, expliquei para quem quer que fosse o dono daquela voz imponente, que eu não estava compreendendo a mensagem. Foi quando ouvi, claramente:

– Está chegando a hora da maior das batalhas e eu preciso de você em meu exército.

Forcei meu tronco estático e minha mente assustada, tentando responder. De tanto me debater figurativamente, acordei.

 

* Texto escrito em homenagem aos 30 anos de lançamento do filme Sonhos (Yume), do mestre Akira Kurosawa.