Hoje eu acordei doente

Em nossa semana especial com postagens homenageando Harry Potter, convidamos a amiga publicitária Rachel Brandão para falar sobre a importância da série em sua vida. O texto original pode ser conferido nesse link!

harry-potter-especial-crianca-amaldicoadaHoje eu acordei doente. Cinco dias tossindo como um cachorro and counting. Tava praticamente afônica. Binei o celular da minha mãe, que veio até o meu quarto (como todas as vezes em que eu acordo com preguiça de levantar e etc), expliquei a situação e ela ligou pra minha otorrino (que já é quase da família, dada as minhas propensões respiratórias malucas). Ela receitou o de sempre, cama, chá e anti-gripal, até que eu fosse ao consultório dela, na segunda.

Me levantei com o peso do mundo nas costas. Minha mãe tinha inventado de fazer um almoço de despedida pro colega de trabalho dela, Dr. Lucas. Apenas culinária árabe, especialidade da minha avó. Quibe, tabule, salada árabe, um creme de grão de bico cujo nome não sei escrever, muito pão sírio e afins. Refrigerante, cerveja, uísque, tudo pra uma boa festança.

E eu no quarto, doente.

Troquei de roupa rapidamente e fui ao banheiro checar minha cara e voltei pra cama. Agarrei meu livro (Deathly Hallows), que estava mais ou menos na metade, e continuei minha leitura, de cortinas fechadas e abajur aceso.

Não é segredo que os sete Harry Potter’s são meus livros preferidos. Claro, como boa ratazana de biblioteca, sei que não são dos mais elaborados, criativos ou inovadores. Sei também que gostar tanto da saga pode me colocar para trás ao ser comparada com os “gênios” que lêem Dostoiévski, Tolstoi e Eça de Queiroz. Aliás, dos três, só li o primeiro. E achei chato.

Os sete volumes da tia Jo (ah, que saudade dos fóruns de discussão, onde J.K. Rowling era apenas a “tia Jo” e Voldemort, um dos vilões mais malignos da literatura juvenil, “Voldy”) não significam para mim tanto por seu valor literário (embora eu o veja e aprecie — quem mais ata pontas soltas como a Jo?), mas por terem sido os livros com os quais eu cresci.

Veja bem, eu fui uma criança boba. Tímida, feiosa, com óculos enormes e pais separados, antes disso ser o costume. Morava — e ainda moro — com minha mãe e minha avó, as três gerações colocadas em ordem de nascimento na distribuição dos quartos que seguem o corredor-biblioteca. Não tive irmãos que me enfezassem nem vizinhos com quem jogar bola ou andar de bicicleta. Até os nove ou dez anos, tanto minha mãe quanto minha avó trabalhavam, o que me dava muitas horas sozinha, ou em companhia de Ila — minha babá — mais a cozinheira da vez. Assistia novelas mexicanas, comia sanduíches de presunto, e depois… lia.

No princípio, eu lia Monteiro Lobato. Li os 12 volumes do Sítio repetidas vezes dos sete aos nove anos. Sabia de cor páginas inteiras, aprendia sobre mitologia, história, geografia e o raio que o parta. Depois tive uma fase de poesia, em que o livro infantil da Cecília Meireles se tornou minha obsessão. Veio O Menino do Dedo Verde, os livros de garota, e toda aquela fase. E então, um dia, voltando do trabalho, mamãe passou na livraria e me trouxe, sem motivo, meus dois primeiros Harrys. Nunca mais parei.

Mas enfim, me desvirtuei. Estava falando do efeito desses livros na minha vida, né? Bom. Assim como Harry, eu era pequena, magricela, usava óculos e me sentia deslocada no meu mundo. E transformei Hogwarts em minha casa, meu refúgio, onde eu me escondia junto com ele, Rony e Hermione, sempre que me sentia mal.

Não existe um amigo que tenha passado por tantas coisas ao meu lado quanto esses sete livros. Quase como uma anestesia, eles me libertavam de sentir as dores do meu próprio crescimento, sentindo as deles. Chorei seus mortos, sorri com suas vitórias, me emocionei, amei e aprendi com esse mundo irreal.

Hoje tenho 20 anos, quase 21. Depois da primeira temporada morando sozinha (os seis primeiros meses), entrei de férias da faculdade e voltei pra casa, pro apartamento de três quartos em sequência. E desde então, nas semanas subsequentes, tenho realizado uma espécie de “adeus” à adolescência. Eu sinto, em algum lugar, que essas serão as minhas últimas férias antes de trabalho — o último passo para a “adultez”. Portanto, me permiti reviver os “melhores momentos” dos últimos dez anos. Ouvi os mixes de The O.C., montei a árvore de Natal, refiz coreografias da Britney, Beyoncé, Madonna e Lady Gaga, assisti novela, saí pra brincar nas decorações de Natal com o Breno, tomei sorvete, cozinhei, fiquei o máximo possível com minha família… e reli Harry Potter inteiro.

Eu só não sabia que ia me tocar tanto de novo. Que eu choraria todas as lágrimas que já tinham secado, que aprenderia muito mais do que antes, que eu teria ainda mais saudade e esse outro sentimento que eu não consigo explicar, mas minha mãe disse que é amor.

Hoje deitada doente no quarto eu terminei o Deathly Hallows, mas me permiti parar um pouco no meu capítulo predileto — o “King’s Cross”, em que o Dumbledore conta tudo de fato ao Harry e fala sobre a morte.

Poucas horas depois de terminar o livro, passei um momento terrível. Minha avó — que em muitas maneiras é meu Dumbledore -, que tem 82 anos, é obesa, com problemas de pressão e um joelho duro, caiu em casa. Se cortou e se machucou, muito sangue, hematomas, ambulância, maca.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Mas por alguma razão, eu mantive a calma, o que não aconteceu das outras. Hoje, pela primeira vez, não tive medo da morte. Pela primeira vez, eu senti que pude me segurar, que tinha o controle da situação, que eu dava conta de viver aquilo.

Mas eu não caí, e esse mérito eu devo dar para mim. E para Dumbledore, meu personagem preferido, o velho sábio e meio amalucado que me disse hoje mesmo de manhã que o amor, esse amor mesmo que a gente sente pelas pessoas, pelo mundo e pela vida, é muito maior e muito mais importante do que a morte. Apenas tem a temer da morte quem não ama. É esse amor, que pulsa e reverbera dentro do meu peito, e faz as lágrimas salgarem no meu rosto agora, é ele que nos salva, nos redime e nos cura. Ele vive dentro de nós, para sempre.

Escrevi esse texto há quatro anos, quando ainda era uma universitária recém saída da adolescência e sustentada pela mamãe. Mudei muito nesse meio tempo — tanto em maturidade pessoal quanto no estilo de escrita— , mas existe algo de ingênuo nesse texto que me faz ter muito carinho pela Rachel da época.