entrevista joao nuno pinto 2020

Buteco na Mostra: “As Mulheres São as Vítimas Mais Brutais da Guerra”

MOSQUITO É UM FILME DE GUERRA PORQUE FALA DA GUERRA, MAS NÃO É DE GUERRA”, define o diretor João Nuno Pinto, que nasceu em Moçambique, morou e teve filhos no Brasil, e vive e faz cinema em Portugal. Os três países dividem laços coloniais. Em seu novo filme, ele discute, ao falar da guerra, justamente sobre essa herança manchada de sangue. Além de outras coisas. 

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Na contramão do que chama de “glorificação gráfica da guerra”, que o cinema muitas vezes teve como regra, o cineasta mostra que os conflitos militares perpetuam racismo, abuso, machismo e traumas por onde passam. “É impossível fugir a estes temas”, avalia. Como se vê, embora se passe há um século (durante a Primeira Guerra Mundial) e num solo distante (Moçambique), Mosquito aborda questões que estão no cotidiano de brasileiras e brasileiros até hoje. Para falar disso e muito mais, confira a entrevista do Cinema de Buteco com João Nuno Pinto.

Buteco na Mostra: “As Mulheres São as Vítimas Mais Brutais da Guerra”:

 

CINEMA DE BUTECO: O auge do cinema de guerra mais popular passou há algumas décadas. Nos últimos anos, porém, ele parece retornar à popularidade, através de títulos como “1917” e Destacamento Blood”. Mosquito, embora não mostre os conflitos armados, se passa na guerra e trata dela. O senhor considera que fez um “filme de guerra”?

JOÃO NUNO PINTO: Mosquito é um filme de guerra porque fala de guerra, mas não é um filme de guerra porque não tem guerra. Ele mostra os rastros da guerra. É mais um drama psicológico, dentro do gênero do filme de guerra. Eu acho que ele se aproxima mais de filmes como “Johnny Vai à Guerra”, que falam da guerra sem mostrá-la. 

CDB: Não mostrar a guerra faz parte, portanto, do que Mosquito quer expressar?

JNP: Nós temos uma tendência [de encarar a guerra de outro jeito], muito por conta do cinema norte-americano da Segunda Guerra Mundial, onde há um inimigo muito claro, que é a Alemanha nazista; há heróis e vilões. Fora que os alemães sempre têm uma pontaria péssima. Depois, [o cinema] foi para o Vietnã, que fala da culpa e há histórias mais complexas. Mesmo nos filmes antiguerra do Vietnã, como “Apocalypse Now” ou “Nascido em Quatro de Julho”, porém, há sempre uma glorificação gráfica da guerra. Há sempre o lado das explosões, dos tiros, que nós, mesmo que sejamos antibelicistas, gostamos de ver – especialmente nós, homens. Em Mosquito, por ser um filme antiguerra, eu procurei não fazer isso, e sim, mostrar o horror subjacente ao rastro da guerra. E falar de outros elementos da guerra, como o racismo e o rastro colonial.

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“A guerra é inventada pelos homens”

CDB: Além de não mostrar os conflitos, Mosquito também aborda outras questões que normalmente não aparecem nos filmes de guerra: um é o já citado racismo, enquanto o outro é a violação feminina, já que as mulheres moçambicanas são vistas pelos militares portugueses como escravas sexuais. É importante para o seu cinema discutir isso?

JNP: Ao falar da guerra, é impossível fugir a estes temas. A guerra é inventada pelos homens, ela é uma narrativa hiper-masculina. Quem têm o poder de fato, durante todo este tempo, são os homens. Sendo a guerra uma luta de poder e imposição de força, é natural que as mulheres sejam suas vítimas mais brutais. Na guerra, elas são usadas como arma de arremesso – desde as guerras bárbaras. As violações são usadas como uma ferramenta de humilhação das vítimas. Violar seus corpos é inerente a todas as guerras.

Esse filme trata da guerra e do colonialismo. O colonialismo é a usurpação da cultura do outro; nós usurpamos sua identidade para impor a nossa. O filme mostra esses dois lados: se o colonizado é o elo mais fraco, a colonizada está no fim da linha dessa cadeia. O homem colonizado ainda serve para carregar as coisas, para ser soldado, para muita coisa, mas a mulher colonizada só serve para cozinhar, procriar e dar satisfação. A mulher negra, ainda hoje, está no fim da cadeia social: é quem mais injustiça sofre, tem condições laborais precárias, salário menor. Ou seja, tudo o que vivemos hoje vem deste lugar mostrado no filme. Vem de narrativas que foram construídas lá atrás.

“O mesmo Estado que te põe na prisão e chama de assassino é aquele que te dá uma arma e autoriza a matar”

CDB: Além de mostrar como a guerra violenta os colonizados e as mulheres, Mosquito mostra o sofrimento e o arrependimento de Zacarias, por exemplo, quando ele mata pela primeira vez. Muitas vezes, o soldado é mostrado nos filmes como uma “máquina de guerra”, alguém naturalmente preparado para matar. O seu filme quer mostrar que o militar também é uma vítima da guerra?

JNP: Todos são vítimas. Todos. Há uma razão maior para a guerra, que normalmente é política. É confronto de egos entre potências, e nada mais; e há de se doutrinar homens, seres humanos, para torná-los máquinas assassinas. O Estado, que é aquele que te põe na prisão e te chama de assassino quando você mata alguém, é o mesmo que te dá uma arma e te autoriza a matar. A maior parte dos soldados trabalhava no campo, tinha apenas uma enxada na mão, e passa a ter uma arma. Para fazê-los matar, foi preciso demonizar o outro. Para os soldados portugueses, os alemães eram a encarnação do mal. Zacarias, ao ir à guerra, embarcou com todas essas narrativas.

CDB: Mesmo assim, ele se espanta com a violência que o cerca, inclusive contra os alemães.

JNP: Quando ele mata pela primeira vez, precisamos lembrar de que ele é um jovem, de 17 anos, matando pela primeira vez. E esse ato vai assombrá-lo por toda a sua jornada. No filme, os papéis e expectativas sempre se invertem. Tanto as de Zacarias quanto as do público. Quando ele encontra um soldado alemão, vê que ele não é um monstro; é só um homem comum.

Buteco na Mostra: “As Mulheres São as Vítimas Mais Brutais da Guerra”.

mosquito critica 2020

“João Nunes Monteiro foi uma escolha perfeita”

CDB: Por falar em Zacarias, o soldado de 17 anos, o ator que dá vida a ele, João Nunes Monteiro, é um dos maiores destaques de Mosquito. Como foi construir, ao lado de um ator tão jovem, uma atuação tão poderosa?

JNP: No início, eu estava um pouco inseguro, pois estava tudo sobre os ombros do ator: se ele entregasse, o filme aconteceria. Ao mesmo tempo, por se tratar de um personagem jovem, um soldado de 17 anos, o ator não podia ser muito experiente. Fizemos um casting exaustivo, com muitos jovens atores, e o João Nunes de fato se destacava. Tanto que nem se encaixava no aspecto físico procurado – eu procurava um soldado forte e ele tem um físico frágil. Mas a força dele vem toda de dentro; ele consegue transmitir toda a arrogância e orgulho e, ao mesmo tempo, a fragilidade do Zacarias. As ações que o personagem comete são de moral duvidosa, então, é muito fácil que o público pense “eu não me identifico com esse personagem, eu não criei empatia por ele”. Se isso acontecesse, também não teríamos história. E, apesar de suas ações duvidosas, a empatia é dada justamente por sua fragilidade, sua inocência. É por isso que o público adere à história. É por isso que o João Nunes foi uma escolha perfeita.

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CDB: A fotografia, bastante escura, constrói na trama um ambiente de desconforto e apreensão. Essa foi a intenção por trás dessa decisão estética?

JNP: Sem dúvida. O filme é sobre este garoto deixado para trás, no meio do mato, que vai à procura da guerra. Tudo isso 100 anos atrás. O que o espera são os animais selvagens, as doenças, os alemães preparados para atacar a qualquer momento, as tribos hostis que ele poderia encontrar. Portanto, nada do que ele encontraria nessa viagem seria fácil. Isso, além de todos os medos e as desconfianças que o implantaram, as febres de malária [o personagem contraiu a doença] que causavam delírios. Por isso, criei uma fotografia que falasse com o espectador não de uma forma intelectual, mas de uma forma visceral. Por isso não usei luz artificial, apenas luzes de fogueiras ou outras naturais. Para o espectador sentir como foi aquela viagem. 

“Nós tínhamos consciência do que queríamos fazer”

CBD: Há uma sequência em especial, num diálogo entre Zacarias e um comandante, à noite, na qual a fotografia praticamente oculta a cena. Ela foi fruto da decisão de não utilizar iluminação artificial, então? 

JNP: Eu lembro exatamente dessa cena. O Filipe Duarte, um brilhante ator português, que infelizmente já nos deixou, a fez de forma impressionante e, no final do take, eu disse: “Está fantástico, mas vamos ter que repetir porque uma vela apagou”. Ele se indignou: “Como assim, uma vela? Vou repetir por causa de uma vela?”. Então, eu lhe contei: “Você não está entendendo, a nossa iluminação vem dessa vela, não é apenas uma vela de cenário, a luz da cena vem dessa vela”. Esse tipo de decisão foi muito pensada porque nós tínhamos consciência do que queríamos fazer.

CDB: A trilha sonora também é bastante tensa. Essa decisão tem o mesmo propósito?

JNP: A trilha tem um duplo efeito. Ela trabalha com texturas, sons, e faz com que o espectador sinta aquilo que está a ver. Ela trabalha de um modo mais sensorial. Eu queria, também, que ela trouxesse uma modernidade de linguagem que tornasse a história mais contemporânea. Algo com que, embora fosse passado 100 anos atrás, o público de hoje pudesse se identificar. E alguns jovens disseram: “Eu me identifiquei com a cena da festa, o cara tomou um ácido e começou a delirar”. É isso, a música fez com que os jovens se identificassem com a cena.

“Tivemos que mudar várias vezes de locação”

CDB: Mosquito foi filmado em Moçambique?

JNP: 90% filmado em Moçambique e 10% em Portugal. Não conseguimos filmar em Moçambique pelo baixo orçamento. Pela quantidade de atores e equipamento que precisávamos, não conseguimos deslocar tudo até lá, mas 90% foi. Uma das razões dos múltiplos atrasos para o lançamento, inclusive, foi a instabilidade política de Moçambique. Alguns dos lugares em que íamos filmar ficavam próximos de regiões onde conflitos aconteceram na época, o que nos impedia. Tivemos que mudar várias vezes de locação desde que o filme foi pensado, há sete anos. Até que, em 2018, conseguimos ir a Moçambique, filmamos em dois meses e, enfim, está aí o filme.

CDB: Está aí, lançado em lugares importantes. Como tem sido a experiência de exibir Mosquito na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo?

JNP: Aquilo que é bacana nos festivais, que é exatamente a interação com outros colegas da área e com o público do mundo inteiro, não está acontecendo. Então, não há propriamente a experiência – nem da Mostra de São Paulo, nem dos outros festivais. Mas a recepção do filme está sendo muito boa e isso é muito positivo. Ver a receptividade das pessoas à história, ao nosso trabalho, é muito bacana. É para isso que fazemos cinema. 

Buteco na Mostra: “As Mulheres São as Vítimas Mais Brutais da Guerra”.