Entrevista: Aline Lourena, a representação do negro no cinema e em outras mídias

ENTRE OS ÚLTIMOS DIAS 27 E 29 DE NOVEMBRO, um projeto inaugurado na Bahia aportou pelo litoral sul de São Paulo, promovendo vivências culturais afro-brasileiras. Esta já é a segunda edição do Diásporas Urbanas, evento idealizado pelo coletivo baiano Sistema Kalakuta e realizado na cidade de Santos, que contempla música, dança, moda, literatura e cinema, numa série de atividades gratuitas e abertas ao público em alguns espaços da cidade, como o SESC e o Instituto Arte no Dique. Na oficina AFROCINE, um panorama sobre a atual representatividade do cinema negro no país, a cineasta Aline Lourena, mestranda pela UFRJ, apresenta as diretrizes do laboratório de práticas e pesquisas que desenvolve no Rio de Janeiro. Ela falou sobre a iniciativa para o Cinema de Buteco:

Aline Lourena Oficina Afrocine
Aline Lourena

Me fale um pouco de você, sua trajetória profissional e como chegou a esta iniciativa para o Diásporas Urbanas…

Sou nascida em Santos, litoral de São Paulo, onde vivi até os meus 18 anos. Fui bailarina por 15 anos, mas acabei não levando tão a sério minha paixão pela dança quanto pela produção audiovisual. Em 2006, tudo começou a mudar, quando aportei na cidade maravilhosa para estudar Radialismo (atualmente Cinema/Audiovisual), na UFRJ. De lá pra cá, fui apresentadora do programa matinal Conversa Afiada, na extinta TV Comunitária da Rocinha, formei o grupo independente de produção de vídeos Intervalo Carioca, com Bruno Martins e Rodrigo Tangerino – meus colegas na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde estudei roteiro cinematográfico. Em 2008, fui parar no Festival de Cannes, na competição Cinéfoundation, com o curta-metragem O Som e o Resto, produzido durante meu período na escola. O filme participou de outros festivais internacionais como Clermont-Férrand, San Sebástian, Algarves. Ganhou o prêmio de Júri Popular no Festival de Curtas-Metragens de SP.

Em 2009, fundei a Thelírios Filmes, estúdio de produção audiovisual multiplataformas (cinema, TV, internet e novas mídias). Buscamos construir um conjunto de obras multicultural que contribua para a transformação social e o progresso humano em favor da diversidade, assim como para difusão e valorização da cultura afro-brasileira em suas experiências e expressões artísticas. Foram muitas as experiências adquiridas com a prática da comunicação audiovisual. Em números, foram 2 webséries dirigidas, 50 vídeos musicais, 1 DVD/show, 2 videoclipes, 2 webcanais desenvolvidos e participação em inúmeros cursos, festivais nacionais e internacionais, fóruns, colóquios. Atualmente, sou mestranda em Comunicação e Cultura pela PPGCOM-UFRJ, onde pesquiso a identidade afro-brasileira e representação das relações raciais na produção audiovisual contemporânea. E, também no Rio, desenvolvo o #AFROLAB, laboratório de criação e produção e valorização do protagonismo da juventude negra, que envolve encontros para debate e fomento da produção audiovisual.

A iniciativa de participar do projeto Diásporas Urbanas surgiu a partir do convite da produtora cultural Dayane Rodrigues de incorporar a Oficina AFROCINE – Práticas e Pesquisas sobre o Cinema Negro à programação do evento. O que foi uma grande oportunidade de partilhar a minha pesquisa e produção com o público da cidade onde nasci, após quase 10 anos vivendo no Rio de Janeiro.

No momento, você está realizando uma pesquisa sobre a representação do negro no cinema e em outras mídias, certo? Quais são as referências e os parâmetros que ela está abrangendo? Existe algum diferencial em relação a outras pesquisas do tema realizadas no Brasil?

Perfeitamente. A pesquisa é intitulada Nós Por Nós Mesmos! Identidade afro-brasileira e representação das relações raciais na produção audiovisual contemporânea e tem por objetivo mapear o cinema de produtores e realizadores afrodescendentes que ajudaram a constituir na prática a denominação “cinema negro” ao longo dos últimos dez anos. Os parâmetros teóricos que orientam este estudo estão pautados na construção discursiva do racismo na mídia, através de um rompimento com a naturalização das diferenças étnico-raciais, que sempre desliza para o racismo biológico e acaba por reforçar o mito da democracia racial.

O diferencial do nosso trabalho é que adotamos a perspectiva da autorrepresentação, na representação da imagem que o afro-brasileiro faz de si mesmo, tendo em vista as motivações econômicas, políticas, sociais e estéticas. Acreditamos que, ao forjar o próprio senso de si por meio dos bens, os afro-brasileiros afirmam simultaneamente a individualidade e o pertencimento, criam narrativas biográficas e, coletivamente, atribuem significado aos objetos da cultura nacional. Intencionamos questionar as possibilidades de resistência e contenção que a linguagem audiovisual projeta a acerca destes grupos inferiorizados.

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Lápis de Cor, de Larissa Fulana de Tal

Na sua opinião, quais filmes têm melhor representatividade para a comunidade negra?

 E qual a importância do termo “cinema negro” enquanto definição de gênero no cinema?

Na produção audiovisual, as imagens possuem força de construção das identidades positivas na medida em que apresentam – ou representam – a possibilidade de problematização das informações no seu conteúdo. Algumas obras audiovisuais têm promovido com potência a discussão sobre as relações raciais: Cores e Botas, de Juliana Vicente, Lápis de Cor, de Larissa Fulana de Tal e Jonas, Só Mais Um, de Jefferson De. No Brasil, o Cinema Novo foi responsável pela disseminação de ideias antirracistas, ao trazer o negro para o protagonismo de suas produções – uma democracia evocada para pôr fim às tensões étnicas.

Assim, podemos compreender que, ao se falar de um “cinema negro”, não estamos nos referindo a um gênero, mas sim à identidade que parte de uma rede de relações sociais, históricas e culturais que ultrapassam classificações de estilo para serem categoria, nos parâmetros propostos por Stuart Hall, Clifford Geertz, entre outros. Quando perguntamos a que interessa um “cinema negro”, nos referimos necessariamente a uma questão política de afirmação, negação, contestação e reificação, um agenciamento de significação e significados, através dos símbolos poéticos que compõem a ética e a estética do cinema.

A iniciativa de projetos como Querô e Instituto Criar, a internet, as novas gerações, a estratégia do “nós por nós mesmos”, as verbas estatais: quais são as oportunidades e a atuação da comunidade negra na produção audiovisual contemporânea?

Na era da democratização do acesso às tecnologias da informação, notamos a considerável proliferação de iniciativas sociais que ganham espaço na mídia, por promoverem pela via artística meninos e meninas das grandes periferias urbanas ao panteão da fama da indústria do entretenimento. A imagem revigorada desses jovens, produzida pela mídia, se distancia e muito da ação política ordenada que inclui o direito à educação, à saúde, à justiça e à cultura. Assim, podemos pensar que o “truque” da autorrepresentação, apesar de procurar travestir e criar uma máscara social, por vezes pode não conseguir disfarçar as diferenças sociais. Deste modo, é fundamental compreender como os participantes dos projetos sociais ligados ao audiovisual, de maneira geral, estruturam seus discursos polissêmicos de emponderamento acerca do processo de construção da identidade racial negra. É para isso que servem estas iniciativas.

Se as ações sociais não estiverem ligadas e estruturadas a mudanças na forma como os afro-brasileiros se percebem, estarão oferecendo projetos que trarão pouco retorno efetivo a sociedade. O pesquisador Noel dos Santos Carvalho aponta que os realizadores que hoje pautam uma nova imagem do negro e, por extensão, do Brasil, certamente trazem o acúmulo das reflexões precedentes e apontam para novas formas de entendermos e transformarmos nossa realidade, o país e cada um de nós mesmos. Nos últimos anos, estamos assistindo a um aumento na distribuição de recursos do audiovisual para realizadores negros através de iniciativas do âmbito dos governos. O Estatuto da Igualdade Racial também tratou de prever a igualdade de oportunidades em produções audiovisuais, mas as leis são vagas e insuficientes para mudar a cara do cinema. Portanto, apesar do aparecimento de editais públicos voltados para a produção afro-brasileira de cinema, a caminhada ainda é longa e o trabalho bastante duro.

Aline Lourena Oficina Afrocine