A Maldição das Cinco Caipirinhas – Capítulo 4 – Não Esqueceram de Mim

A Maldição das Cinco Caipirinhas é a primeira obra de ficção colaborativa do Cinema de Buteco. São 10 capítulos de 10 autores diferentes, publicados toda quinta-feira, que contam a história de Orson, um cinéfilo bêbado que conhece uma garota no Tinder e se envolve numa trama enigmática e imprevisível. Leia os capítulos anteriores aqui.

Além de continuar a história, cada autor deverá encaixar uma citação cinematográfica no meio do texto. Neste capítulo 4, Rodrigo Fernandes teve que colocar:

“Tá de pomba-girice comigo?”
(Coronel Fábio em Tropa de Elite 2)

Capítulo 4 – Não Esqueceram de Mim

por Rodrigo Fernandes

NO CAMINHO PARA O CINEMA PEGO O REVÓLVER com um amigo do Barretto que eu também conheço. Segurança em primeiro lugar, penso com um sorriso no rosto. Se alguém guardou algum rancor terá que dizer olá para o meu amiguinho.

Gosto da ideia de fazer como Nolan ensinou: se não se lembra, siga as tatuagens. No meu caso, os ingressos de cinema. O mais antigo deles é emblemático e merece ser investigado, Coração Satânico no Roxy. Sou um grande fã do Mickey Rourke, que faz o personagem principal desmemoriado. Nada poderia ser mais adequado. Que Louis Cypher me carregue se eu não descobrir o que aconteceu nos últimos dias.

Chegando lá, o cinema já é conhecido, mesmo não sendo dos meus favoritos. Prédio baixo de só um andar, mesmo com o pé-direito alto por conta da tela. Entro e percebo rostos familiares. Um gordo De Niro e um jovem Al Pacino estão debruçados sobre a separação para as salas de cinema. Todo o ambiente é mal iluminado e esfumaçado o suficiente para lembrar de uma época em que fumar em ambientes fechados não era um problema. Tudo pareceria assustador o suficiente em uma foto, mas o cheiro de tutti frutti entrega uma realidade mais patética: máquina de fumaça. Com cara de deboche, De Niro fala algo que me pareceu: “Safadinho, safadinho”. Pacino esboça um sorriso diabólico enquanto um arrepio percorre minha espinha. Estou me aproximando da dupla com a ideia de descobrir mais sobre os dias que se foram e se ele realmente falava de mim.

Meu boa tarde ganha como resposta um ácido “voltou atrás de mais, não foi?”. Minha reação parece ter sido inequívoca, pois De Niro continua dizendo “se eu fosse você também tentaria esquecer”. De Niro se junta ao Pacino em seu sorriso satânico. Não tento esquecer, mas lembrar, esclareço. Seus olhos brilham ao perceber a oportunidade e não posso deixar de perceber o que se aproxima. “Minha memória é falha, não sei se lembro da sessão de Coração Satânico que te trouxe aqui… 50 mangos poderiam me ajudar a lembrar, mas 200 podem até me fazer falar a verdade”, provoca De Niro. Nesse instante todo o ar diabólico dos sorrisos desaparecem deixando apenas um vulgar ar de ganância.

A fumaça, sorrisos, ganância, tutti frutti e incertezas fazem tudo girar mais rápido do que deveria. Se não fosse por isso acho que ele não teria caído em si com a Magnum 44 na boca, impedindo ele de falar, até de graça, aparentemente. Eu grito “Tá de pomba-girice comigo?” para o De Niro enquanto Al Pacino sai correndo ligeiramente histérico. Nem John Milton na atitude, nem Tony Montana na coragem, ele deixa seu amigo em minhas mãos sem esboçar reação. É muito difícil entender o que o apavorado atendente tenta dizer com a arma na boca dele. Sinto que não tenho muito tempo e puxo a arma para trás. Agora ela está apontada para sua cabeça, atrapalhando mas não impedindo que ele se lembre em detalhes de como fugi da sessão do filme para o banheiro com uma garota de maneira pouco discreta.

Começo a descrever a garota do bar, mas ele sacode a cabeça. A descrição que ele faz me assusta muito mais… Era Daniela, minha ex-namorada. Mas que raios eu estava fazendo com minha ex-namorada no banheiro, e ele ri da minha indignação. Namorada, pergunta. Ficou lá dois minutos e saíram de novo, sem a maquiagem que sua “namorada” usava, ele diz com um ar cínico como que acreditando que está recuperando a vantagem por estar se lembrando de tudo. Bom, é sim uma vantagem por que eu continuo não lembrando de nada. De que cacete de maquiagem você está falando, ameaço com a arma se aproximando de novo. Uma agitação começa a se fazer ouvir na porta do cinema, mas não é possível ver nada através da fumaça tutti frutti. As palavras que ouço na sequência me fazem estremecer. “Ela era ele, olhei depois de vocês terem saído do banheiro e não tinha mais ninguém lá. Sua namorada é homem, e de certa forma pareceu o Giamatti ao sair de lá, mas deve ter sido impressão…”. O burburinho vai crescendo e eu sinto que meu tempo ali se esgotou.

Para escapar mergulho em uma das salas e vou me esgueirando pela saída de emergência que dá para um beco ao lado do cinema enquanto um copo de caipirinha se espatifa no chão do beco. A sombra de um policial começa a surgir na entrada da sala de cinema. Entre a cruz e a espada escolho sair. Na rua há mais alternativas para fugir e o policial não parece ter percebido minha rota de fuga. No beco, outro copo se espatifa junto aos meus pés arremessando cacos de vidro, gelo, cachaça e limão para cima. Um dos cacos corta minha canela de maneira superficial. Olhando para cima posso ver uma pessoa, mas não consigo identificar o agressor. Em um cruzar de olhos me vem um flash maldito e reconheço o garçom psicopata no telhado do cinema. Acuado, não sei por onde fugir do beco atulhado de lixo, caixas e contêineres. Um sorriso ameaçador e perigoso parece perdido naquele sujeito tão ordinário, e ainda assim ele está lá pairando de cima do cinema de maneira ameaçadora.

Naquele momento sinto uma mão agarrar meu pulso e me puxar em direção à rua principal de maneira inesperada. Dois carros de polícia se encontram parados e vazios diante do cinema, mas seus ocupantes devem sair pela porta de emergência em pouco tempo, assim que perceberem por onde me fui. Desejei que o puxão tivesse sido dado por Daniela, talvez ela pudesse me explicar o que estava acontecendo. Desejei que fosse a misteriosa menina do bar, mesmo sem ter qualquer ideia do que ela teria a ver com tudo isso. Mas me deparo com a silhueta de Barrettão contra o sol que brilha logo acima de seu ombro. Sua voz soa canastrona, mas ameaçadora, enquanto ele me diz a maior verdade que ouvi naquele dia de merda:

— Mas você é um idiota mesmo!!!

***

Esta história continua na próxima quinta-feira, aqui mesmo no Cinema de Buteco. O capítulo 5 ficará a cargo de Guilherme Huyer, que deverá encaixar a frase: 

“Você é um… cocô!”
(Stallone Cobra)

LEIA O CAPÍTULO 5

Organização e edição: Lucas Paio
Arte: Renato Trindade