Xaveco de Buteco #1: Em Forno Brando

Irmã Dolores estava na Congregação havia mais de 10 anos. Um exemplo de dedicação cristã, sua vocação era tida como sólida e genuína. Desde que, na infância, quando vira o filme Marcelino Pão e Vinho, se imbuíra do espírito religioso que foi sendo alimentado pela família. Naquele tempo se chamava Cíntia; aos trinta anos era Irmã Dolores, Carmelita.

Como de hábito levantara às 5:00, ajudara a servir o café e participara das primeiras orações no Carmelo, junto ao resto da Comunidade.

Em seguida, varrera o pátio e fora ajudar na horta. Plantara e colhera.

Até então, não proferira uma única palavra com ninguém além das orações.

Nova oração coletiva, almoço no Refeitório da Congregação, e à tarde, enfim, pôde se dedicar a um afazer instigante fora de sua rotina. No dia seguinte era o aniversário da Superiora e Dolores, como sempre, fora incumbida de fazer o bolo, algo que dominava com maestria; aprendera com a mãe.

Esperou a cozinha esvaziar da confusão do almoço e espalhou na bancada os ingredientes.

Colocou o açúcar na tigela grande, peneirou a farinha e tomou os ovos para separar as claras, que seriam batidas em neve.

Pegou o primeiro ovo, grande, vermelho, fresquíssimo, colhido ainda hoje cedo na granja do próprio Convento. Ficou até com pena de trincar sua casca com a batidinha na borda da mesa, tão bonito era.

Enfiou com delicadeza os polegares pela casca adentro e rapidamente dispôs a mão entreaberta para deixar fluir a clara e reter a gema. Sentiu a gosma densa escorrer na palma da mão fazendo uma cócega ligeira, para depois se infiltrar avassaladoramente entre os dedos pelo vinco deles com a palma. Por fim, na mão brilhante e pegajosa da clara que se fora, sobressaía apenas a gema, rútila, amarela quase vermelha, frágil, mas perfeitamente contida na tensão invisível de sua superfície. Inclinou-a para um lado e para o outro e sentiu-a deslizar, sempre coesa, adestrada e obediente ao movimento que imprimia.  Aquela vida em potencial parecia um animalzinho em sua mão. Olhava fascinada, como se fora aquela a primeira vez que fazia esta operação que, entretanto, lhe era tão familiar. Foi por fim inclinando a palma devagar e encaminhando a gema dócil para o precipício que a lançaria na tigela. No último momento, porém, resolveu estraçalhá-la. Apertou os dedos com força, com prazer mesmo, e viu a gema, desprendendo um cheiro nítido e insuspeitado, lambuzar toda a sua mão para repousar enfim, amorfa, na tigela, sobre o açúcar agora ferido de amarelo.

Lavou a mão devagar, completamente desligada do afazer culinário.

Tomou então o segundo ovo e, como que voltando a si, lembrou que era terça-feira, dia em que, à tarde, o Capelão ouvia Confissões.

Precisava vê-lo sem falta.

 

Sobre o autor

JUSTINO VIEIRA – Engenheiro de Estruturas, Professor de
Engenharia na UFF e Arquitetura na PUC-RJ, leitor obsessivo, e que passou a vida inteira às voltas com números e contas, mas aprendeu com Drummond que “a luta com palavras é a luta mais vã.”