Aquarius: Um manifesto do nosso tempo

Aquarius

1ª Parte – O velho e o novo

“Uma mensagem numa garrafa.”

Assim, Clara define o conteúdo de um precioso vinil de sua patrimonial coleção. O MP3 também lhe agrada – por ser música, útil. Por funcionalidade.

Aquarius também é um filme disso: da guerra diariamente travada entre o velho e o novo, as mídias tradicionais e novas disputando um mesmo espaço, a cultura de tempos anteriores sendo substituída, a dialética cotidiana sobre um novo modo de pensar o conteúdo, a necessidade desvalorizada de preservação da memória. A transformação ocorre diante dos nossos olhos e enquanto dela nos apropriamos. Está na troca de um vinil por um download e na reforma de um prédio que descarta sua antiga arquitetura.

O suposto vencedor, porém, não atesta merecimento: deveria assumir que, não, ouvir a uma música no celular não será melhor do que ouvi-la numa vitrola, assistir a um filme numa tela de tablet nunca oferecerá uma experiência tão completa quanto a de vê-lo numa sala de cinema, ler um texto digitalizado não será tão produtivo quanto lê-lo em papel impresso, e – pasmem – um texto composto por memes, figuras animadas e rankings jamais superará o conteúdo de um com extensão de informação escrita – mesmo que acumule o triplo de acessos.

É evidente que exista a necessidade da renovação, da revolução digital; é óbvio também que, embora Umberto Eco tenha sido eloquente ao afirmar que as novas mídias sociais deram voz à “legiões de imbecis”, a digitalização também trouxe avanços notáveis no sentido de dar espaço a minorias, projetos independentes etc. Não há espaço, aqui, para defesas cegas.

Deve-se criticar duramente, na verdade, a lógica deste processo: a de uma modernização que, nas palavras de Zygmunt Bauman em “Modernidade Líquida”, está mesmo disposta a “derreter os sólidos”, pelo caminho da “(…) profanação do sagrado: pelo repúdio e destronamento do passado e, antes e acima de tudo, da ‘tradição’ – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente (…)”; a partir de outro contexto, o filósofo nos auxilia fundamentalmente a assimilar este duelo: mesmo que ambos possam, como deveriam, coexistir, a “revolução produtiva” não quer que assim o seja.

Deve-se criticar duramente, ainda, a ideologia que fundamenta este processo: aquela que crê cegamente na passagem do tempo como sinônimo de progresso, no avanço tecnológico como domínio absoluto do homem sobre a natureza e sua realidade, no culto à velocidade, ao que é ágil e passageiro. Estas foram as mesmas bases do projeto de pensamento do modernismo – e este, a História, a Filosofia e a Sociologia nos ensinam, fracassou. Foi traído pelo tempo.

Aliás, que se duvide até mesmo da lembrança de tais ideais: soa como discurso vazio, uma vez que, neste processo, a modernização é conduzida exclusivamente pelos ritos da massificação lucrativa, da reprodutibilidade e da mercantilização.

Uma lógica que, não se enganem, esconde sob o pretexto da inovação como necessidade, uma estrutura responsável por retirar do conteúdo cultural a afetividade, a sensibilidade, a subjetividade, trocando-as por maior “funcionalidade”, valor de troca, perspectiva de reprodução – afinal, o faz até mesmo com os lares de seres humanos. Resistir a ela, preservar a memória com vida, é ser taxado como “louco”, “ultrapassado”, sofrer a exclusão sob o viés modernizado. Clara é memória.

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2ª Parte – Sobre Reconhecimento

Considerando as configurações conjunturais da atualidade, passou a haver uma necessidade de que as atividades públicas garantissem mais rigorosamente direitos aos grupos negligenciados pelos campos mercadológico e público, bem como muitas vezes pelo conjunto moral estabelecido. Por vezes, nomeados “direitos de reconhecimento”. Cabe a uma produção cultural, audiovisual, também, fortalecer uma proporção de reconhecimento que permita a absolutamente todos os grupos fragmentários de uma sociedade se verem representados pela cultura de sua nação, legítima e justamente.

Infelizmente, porém, ainda há na cultura de massa, nas grandes produções, uma defasagem revoltante neste sentido, mantendo a representatividade redutiva de uma hegemonia que não representa mais a realidade; e é possível afirmar isto a nível global, tomando como parâmetro as notórias e “multinacionais” produções estadunidenses – mas a lógica nacional funciona da mesma forma -, nas quais ainda são raros (ou raríssimos) os casos de, por exemplo, protagonismo feminino – exclua casos nos quais a protagonista é uma mera exposição de um padrão de beleza, pois não significam avanço -, bem como dos negros, latinos, homossexuais e muçulmanos, entre outros grupos étnicos, gêneros e culturas que, em perspectiva comparativa com o grau de importância que possuem demograficamente, são gravemente mal representados, tendo todo o seu espaço tomado pelos hegemônicos grupos de protagonistas homens, brancos, jovens, ricos e extremamente seguros, impondo através do poder de influência cultural a ideia deste grupo como socialmente central e “padrão de desejo”.

Cabe, então, a projetos financeiramente menores mas mais conscientes de sua realidade, como Aquarius, o exercício da missão progressista da arte. Coube a Kléber Mendonça Filho escrever e a Sônia Braga interpretar Clara, uma personagem vigorosamente representativa. Uma escritora e ex-jornalista que é mãe e foi esposa, mas não endossou a tradicional convenção machista de abdicar de um projeto pessoal de vida em nome dos cuidados da família; uma mulher já madura, ou mesmo envelhecida, mas que não se renega de, como qualquer ser humano, poder ter um desejo sexual – é bela, diga-se, a rima narrativa construída relacionando o momento no qual ela volta a ouvir Queen à recordação da energia de sua juventude -, sem ser julgada por isto; é forte, madura e mulher: Clara é uma das protagonistas que a tradicional hegemonia não quer.

Aquarius quer. Como deseja e coloca em prática, junto de outros importantes títulos, um novo modelo de representar o mundo.

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3ª Parte – Sobre Resistência

“[…] Do ponto de vista sociológico, eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, embora se integre cada vez mais, incuba simultaneamente tendências desagregadoras. Essas tendências desagregadoras sob a superfície da vida civilizada organizada têm progredido extremamente. (…) tende a desintegrar o particular e o individual juntamente com sua capacidade de resistência. Com sua identidade e sua capacidade de resistência, os homens perdem também as qualidades graças às quais ser-lhes-ia possível opor-se àquilo que, a qualquer momento, possa novamente atraí-los para o crime. Talvez nem sequer consigam resistir, quando lhes é ordenado pelos poderes constituídos que voltem a praticar a mesma ação, desde que tal aconteça em nome de quaisquer ideais, nos quais nem precisam acreditar.

[…] uma consciência coisificada. Trata-se porém de um consciente que rejeita tudo que é consequência, todo o conhecimento do próprio condicionamento, e aceita incondicionalmente o que está dado. (…) Ademais, no consciente coisificado também se deveria observar sua relação com a técnica, e isso não apenas em grupos pequenos. (…) Um mundo como o atual, em que a tecnologia ocupa posição-chave, produz pessoas tecnológicas, afinadas com a tecnologia. Isso é bem racional: será mais difícil iludi-los, na sua própria área, e isso pode ser transferido para o âmbito mais geral. (…) No tipo que tende para a fetichização da tecnologia, trata-se, simplesmente, de pessoas incapazes de amar. Isso não tem uma conotação sentimental, nem tampouco moralizante, mas designa o insuficiente relacionamento libidinal com outras pessoas. São pessoas essencialmente frias, que devem negar no seu íntimo a possibilidade de amar e cortam o amor pela raiz, antes que possa desabrochar em outras passoas. O que nelas ainda sobrevive da capacidade de amar, elas precisam usar em coisas materiais. (…) O que choca tanto nesse fato – e choca porque parece tão inútil combatê-lo – é que essa tendência está ligada à civilização inteira. Combatê-la equivale a opor-se ao espírito do mundo. […]”

– Theodor W.Adorno, em “Educação Após Auschwitz”.                                           

Embora seja necessária uma recontextualização das observações de Adorno, que se encontravam num crítico e temerário contexto pós-Holocausto – e aqui não há intenção de aproximar ninguém de uma figura nazista -, basta refletir à luz dos trechos destacados para, assustadoramente, aproximar a análise apresentada a alguns aspectos de nossa atualidade. Seria possível debater a partir disto, por exemplo, a “coisificada” reação daqueles que compartilham vídeos de seres humanos sendo agredidos sem o menor resquício de compaixão pelas mesmas; ou, para ater-se à obra-tema deste texto, retomar nossa discussão da primeira parte, acrescentando a percepção do avanço tecnológico como um mediador deste processo que dissolve os sentimentos. No entanto, é possível que a discussão mais contundentemente presente em Aquarius seja aquela, na mais literal das reproduções, sobre a resistência.

Aquarius nos envolve num drama que é, sobretudo, de resistência. Um verossímil catalisador das histórias de muitos brasileiros que veem seus direitos individuais desrespeitados, arruinados, em nome dos interesses desenfreados de conglomerados muito mais poderosos, numa moderna e coerciva era do capitalismo que, silenciosa e travestida de calmaria, amplia seus abusos. Catalisa a história do sujeito que não vê sua operação paga em decorrência de uma burocracia das mais apelativas de um plano de saúde – e morre esperando -, a das 128 famílias que tiveram suas casas atingidas pelo irresponsável desastre de Mariana – e depois, negligenciadas pela mesma corporação que o causou -, a dos trabalhadores que perderão direitos com as alterações das leis trabalhistas que muito provavelmente ocorrerão em breve, e as de muitos outros, severamente prejudicados por uma lógica de mercado que fetichiza não apenas a tecnologia, numa revitalização do texto de Adorno, mas também a incontrolável “necessidade” de expansão e acúmulo. Que transforma aqueles que por ela devem trabalhar em indivíduos coisificados, incapazes de sentirem compaixão por seus iguais, uma vez que só tecem sentimentos por bens materiais e pelas “causas” das corporações a que representam – como Diego Bonfim.

A este segundo grupo, talvez, Aquarius possa servir para a retomada de alguma sensibilidade ali ainda residente. Ao primeiro, porém, é um filme fundamental: oferece um imprescindível sopro de esperança. Clara, mesmo diante de uma corporação destinada a tomar as mais inescrupulosas medidas – e, de fato, as toma – para destruir e converter em valor material aquilo que ela, em sua “ultrapassada” subjetividade, chama de “lar”, está disposta a resistir. Disposta a, como o trabalhador brasileiro, lutar sozinha, consciente da omissão de uma imprensa e de um Estado que, majoritariamente, só dão voz às elites. Disposta a responder com caráter, dignidade e honestidade a um grupo dominante que há tempos substituiu essas virtudes éticas por mais posses em seus nomes e mais cédulas em suas contas bancárias. Disposta a travar uma batalha na qual nem deveria precisar entrar. Disposta a opor-se ao espírito – doentio – do mundo.

E, afinal, é esta resistência o que incomoda. Incomoda a ponto de levar uma figura midiática, expoente de uma classe elitizada e de um pensamento reacionário, a conclamar um boicote ao filme. A ponto de fazer um governo perpetuador desta lógica de mercado tentar despopularizar a obra, a priori por meio da classificação indicativa restritiva e injustificada, e por fim com sua não-indicação – ainda menos justificada – como o representante brasileiro na disputa pelo Oscar 2017. Aqueles que concentram os poderes político e econômico evidentemente desejam silenciá-lo. O fazem por temerem tudo aquilo que pode proporcionar aos cidadãos menos abastados uma dose de consciência a respeito das injustiças às quais são diariamente submetidos. O fazem por temerem mais Claras. O fazem pelo pavor da resistência.

Mal sabem o quanto a fortalecem.

Que Aquarius grite.