Buteco Pelo Mundo #4 – Moçambique

FORAM TRÊS ANOS DE HIATO — tá bom, pode chamar de enrolação —, mas a coluna Buteco Pelo Mundo finalmente está de volta. Nossa aventura cinematográfica começou na Ásia, conhecendo o incipiente cinema do Laos; passamos pelo Oriente Médio para descobrir os poucos filmes da Arábia Saudita; demos um rolé pelo Leste Europeu para um panorama do rico cinema polonês; e agora chegamos à África para conferir o cinema dos nossos irmãos lusófonos de Moçambique. Bem-vindos à quarta edição do Buteco Pelo Mundo!

Para ler ouvindo: Música de Moçambique – O Essencial

MOÇAMBIQUE
Onde fica: 
Sudeste da África
População: 25 milhões
Capital: Maputo
Língua oficial: Português
Cervejas típicas: Laurentina e 2M

Moçambique já chegou a ser o país mais pobre do mundo.

Após mais de 4 séculos de domínio português e uma guerra colonial que durou mais de uma década, Moçambique tornou-se finalmente independente em 1975 sob o comando da marxista Frente de Libertação de Moçambique, mais conhecida como FRELIMO. Mas um conflito deu lugar a outro: o país mergulhou em seguida numa arrastada guerra civil que terminou apenas em 1992. Um milhão de pessoas morreram e Moçambique só foi declarado livre de minas terrestres há pouco tempo, em 2015. Hoje é um país bem mais estável, mas seu índice de desenvolvimento humano infelizmente permanece lá embaixo, ocupando a 180a posição — de um total de 188 países.

Não é nenhuma surpresa, portanto, que a produção cinematográfica moçambicana seja minguada, com financiamento escasso e pouco incentivo. E os filmes que conseguem ser produzidos ainda sofrem com a falta de salas para exibição: os poucos cinemas da capital Maputo passam as mesmas produções hollywoodianas que estreiam no mundo inteiro, isso quando não pegam fogo, são demolidos ou — o caso mais comum — viram igreja (achou que isso só rolava no Brasil?). Como reclamou com razão um jornal local, “é normal que um filme moçambicano seja exibido, em estreia no estrangeiro, e passem anos sem que os moçambicanos o vejam“.

Uma pena, porque há muita coisa de qualidade sendo produzida por lá — e, como você vai ver, a conexão Brasil-Moçambique vai muito além do português como língua oficial.

O primeiro longa de ficção moçambicano foi Mueda, Memória e Massacre (1979). Reconstituindo um episódio sangrento de 1960, quando soldados portugueses abriram fogo contra uma manifestação, o filme tem uma pegada documental, incluindo entrevistas com sobreviventes e imagens da representação teatral que costumava ser feita no mesmo local — uma encenação surpreendentemente festiva, considerando que centenas de pessoas morreram no massacre.

Foi filmado no Norte de Moçambique em condições extremamente precárias, numa região que nem sequer tinha comida nem nós quase tínhamos para comer“, contou o diretor. Que, por acaso, é bem conhecido dos brasileiros: Ruy Guerra nasceu em Moçambique mas fez carreira no nosso país, onde dirigiu obras seminais do Cinema Novo (Os Cafajestes, Os Fuzis), escreveu letras com Chico, Milton e Edu Lobo e — momento Revista Caras — foi casado com Nara Leão, Leila Diniz e Cláudia Ohana. O retorno ao seu país natal foi breve e ele mora até hoje no Brasil. Continua ativo: seu filme mais recente, a ficção científica Quase Memória (com Tony Ramos, João Miguel e Mariana Ximenes), é de 2015.

Caminho inverso fez Licínio Azevedo, gaúcho que foi parar em Moçambique em 1975, logo após a independência, e continua até hoje por lá. Azevedo tem uma penca de filmes no currículo, entre ficções, documentários e obras que são meio que uma mistura dos dois. Em Desobediência (2002), por exemplo, ele pediu que os protagonistas de um drama familiar reencenassem para as câmeras sua insólita história — incluindo suicídio, fantasmas e julgamento num curandeiro. Já Hóspedes da Noite (2007) mostra o que o destino reservou ao Grande Hotel, o mais luxuoso de Moçambique: hoje é habitado por milhares de ex-desabrigados que encontraram um lar-doce-lar nas ruínas do estabelecimento.

Entre suas ficções, um destaque recente é Virgem Margarida (2012), centrado em prostitutas que foram levadas a um “campo de reeducação” nos cafundós da selva moçambicana durante o conturbado período pós-independência. A personagem-título é uma jovem camponesa virgem que vai à cidade comprar um enxoval e é levada por engano ao lugar.

Virgem Margarida custou 1 milhão de dólares, uma fortuna para os padrões locais — e isso, diz o diretor, “apenas porque o dinheiro demorou, e por estar tudo atrasado paga-se mais caro“. Ele acrescenta: “Em Moçambique não temos atores profissionais de cinema, pois quase não há produção de ficções. O casting, feito em Maputo, foi bastante demorado, várias fases, e procuramos as atrizes entre dançarinas, grupos de teatro de rua, amadores em geral“. Mas esse amadorismo nem se vê na tela: o elenco é bem consistente e a obra tem seus vários momentos de humor para se contrapor a um tema tão pesado (“Hoje eu comi muito bem, bacalhau com vinho verde!“, diz uma “reeducanda”, após mastigar o punhado de arroz disforme que tinha pra janta).

Recentemente Licínio Azevedo lançou Comboio de Sal e Açúcar (2016), que também se passa durante a guerra civil. Desta vez os personagens são militares e civis numa viagem perigosa a bordo de um trem que cruza o país bem no meio do conflito. Nosso crítico Leonardo Lopes, que conferiu o filme no Festival do Rio, apontou ressalvas quanto a alguns clichês típicos de filmes de exército, mas elogiou seus méritos técnicos e artísticos — incluindo as competentes sequências de ação e as discussões que a obra propõe.

Os livros do celebrado autor moçambicano Mia Couto também foram matéria-prima para alguns longas. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, foi adaptado em 2007 por Teresa Prata (aliás, mais uma tupiniquim em Moçambique: ela é mineira). A obra é um “road movie a pé”, lembrando até um filme mais famoso do mesmo ano, Na Natureza Selvagem. Mas em vez de um jovem de classe média que escolhe ser emitão, aqui temos um menino e seu pai adotivo forçados a zanzar por aí por conta da guerra (sempre ela). Também há um ônibus abandonado que eles usam como abrigo, mas aqui cheio de cadáveres queimados, numa das muitas situações arrepiantes do longa (uma outra envolve um velhinho sinistro que quer enterrá-los vivos enquanto canta “Parabéns Pra Você”!).

Outra obra de Mia Couto que vai ganhar as telonas em breve é O Dia em que Explodiu Mabata Bata, com direção de Sol de Carvalho. E o título não é metafórico: Mabata Bata explode mesmo (é um boi que pisa numa mina, deixando em apuros o menino que cuidava do gado e que precisa fugir após o triste fim do bovino). Ao contrário da maioria dos filmes moçambicanos, este não será falado em português, mas em changana, uma língua local. Até porque o português, apesar de oficial, é falado por apenas 40% dos moçambicanos — mais de quarenta idiomas nativos competem com a língua de Camões.

E tem até animação em CGI sendo produzida em Moçambique. Dirigido por Nildo Essá, Os Pestinhas será o primeira longa animado do país, narrando as altas confusões em que se metem os “miúdos” Minhoca, Lili e Zé Gordo para encontrar uma planta rara e salvar a avó envenenada (!). O filme está captando recursos por financiamento coletivo, mais ainda falta muito para a meta e por enquanto não há previsão de estreia.

Fazer cinema não é fácil em lugar nenhum. E a gente sabe como é bem complicado no Brasil, agora imagine num país africano onde o PIB per capita não chega a 2 mil reais? Mas se faltam grana e incentivo, sobram força e determinação nos cineastas moçambicanos para continuar dando a cara a tapa e produzindo filmes apesar das intempéries. Que a conexão Brasil-Moçambique não termine atrás das câmeras: procure Virgem Margarida, Terra Sonâmbula e outras obras citadas (tem muita coisa no YouTube) e conheça um cinema que não se vê todo dia do lado de cá do Atlântico.

Na próxima edição do Buteco Pelo Mundo cruzaremos o Atlântico para falar dos filmes de um país vizinho do Brasil. Até lá — ou, como dizem em changana, hambanine!


Bibliografia/leitura adicional: