Anticristo

CAOS É O CONTRÁRIO DE ORDEM. ONDE HÁ CAOS NÃO HÁ POSSIBILIDADE DE RACIONALIZAR, DE COMPREENDER NADA. Caótica é a natureza, são os instintos, tudo aquilo de que é feito o homem: ser contraditório, que à beira da loucura constante recorre à razão, artifício para subjugar impulsos e controlar aquilo que no fim das contas parece ser incontrolável. A batalha entre estes e outros opostos é basicamente o tema de Anticristo, último longa de Lars Von Trier. Mais ainda que a história do casal (vivido pelos excepcionais Willem Dafoe e Charlote Gainsbourg) que após perder seu filho primogênito decide se retirar num casebre em meio a uma fazenda que eles chamam de Éden.

Pois é nesse isolamento que o pior de ambos passa a aparecer. Duas obsessões: aquela que vem à tona depois da morte do filho (a culpa feminina, culpa histórica, aqui colocada como um peso maior do que a figura feminina pode carregar que se transforma numa vontade catártica, e que se mostra mais perigosa do que parece) e aquela que pretende controlar a todo custo a outra (para tudo se tem uma explicação racional, metáforas são coisas de criança, visões são distúrbios psicológicos, mas até quando a razão suportará?).

Isolados na tal floresta onde estão abandonados consigo mesmos, a exposição aos medos latentes, que a princípio seria método terapêutico, leva a situação para caminhos não esperados, e novamente por que não dizer, não controláveis. “A natureza é a igreja de satã”, ela diz em determinado momento: essa analogia é bem apropriada se pensarmos na igreja convencional como lugar de culto a algo maior, divino, que desperta em nós o que há de mais louvável, e que contém os caminhos e práticas que nos levariam à salvação. Imaginem o contrário disso. É a natureza que nós é apresentada por Von Trier. É lá que o que existe de pior no homem aparece. Não apenas na natureza externa a ele, mas naquela que o constitui, a humana.

Não há como não ceder aos impulsos mais animais quando em contato direto com ela. Uma exposição a essa natureza pode levar a lugares nunca antes imaginados. E aí vêm o tal aspecto polêmico do filme.Se pensarmos que ele foi escrito enquanto o diretor estava num período de séria depressão muita coisa se explica. É ali que conhecemos um lado nosso antes encoberto: a pulsão de morte, as atitudes bizarras, a dor e o desespero (que inclusive são nomes de dois dos quatro capítulos em que se divide a história). No lugar do divino o profano. Ao invés da salvação a perdição. Quando menos se espera, o homem que na história é tido como o mais racional, cede à loucura para dar fim à uma outra, aquela que já dominou a mulher (na cena que para mim, é a mais pesada de todo o filme) desde o início.

Outro detalhe, é que nunca cenas envolvendo sexo foram colocadas de forma tão asquerosa no cinema. É justificável o abandono das salas antes do fim da projeção. Eu mesmo tive que conter essa vontade, no fim do quarto capítulo da história. É um filme que incomoda. Além daquele julgamento do “gostei-não gostei”, Anticristo funciona, e por isso é um excelente trabalho de Lars Von Trier. Bem filmado (o diretor abusa de tomadas em câmera lenta, em closes rápidos; as cenas em preto-e-branco têm uma fotografia sensacional), nada fácil, e ao mesmo tempo deixa a sensação de ser um salto na filmografia de Von Trier. Uma mistura de Bergman com Lynch: isso é Anticristo.

p.s. 1: Leiam O Anticristo de Nietzsche. O filme não é uma adaptação do livro, mas as relações são claras.
p.s. 2: Vejam algo de Tarkowsky. A dedicatória feita por Von Trier não é gratuita.
p.s. 3: post dedicado a querida, linda e sensual lolo. tks!!!

Antichrist (2009)

Direção: Lars Von Trier
Roteiro: Lars Von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Willem Dafoe