Cova Rasa

 Texto publicado originalmente aqui, por Kelson Douglas

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PRO FINAL DA DÉCADA DE NOVENTA APORTOU LÁ EM CASA A TAL DA MULTICANAL. Com uma programaçãozinha bem meia bomba, mas ainda assim infinitamente superior a da TV aberta, esta engatinhada a cabo do Brasil acabou enchendo as minhas tardes com alguns bons filmes, que provavelmente levariam anos para que eu conhecesse. Cova Rasa (Shallow Grave) foi um deles.

Recheado com uma hipnótica acidez, a estreia de Danny Boyle nos cinemas serve até hoje como retrato da geração Kurt Cobain, que talvez tenha sido a última a dar verdadeiros gritos de rebeldia no formato analógico.

Não vou pagar de oldschool por aqui. A versão que tenho de Cova Rasa em DVD é nova. Tão nova, que vem trazendo na capa o título de Quem quer ser um milionário, um dos filmes mais orkutizados e recentes de Boyle. Não que a produção com os Rajs não tenha lá seu charme, mas poxa, este aqui tem cheiro de VHS. É uma pegada diferente. Sei lá. Que deixasse então só Trainspotting como exemplo para os desavisados saberem com o que estão lidando.

O fato é que no roteiro, escrito pelo mesmo John Hodge de outros filmes do diretor, como Por uma vida menos ordinária, o trio de protagonistas é a cara da turminha de vinte e poucos anos daquela era pré-cambriana da MTV. Nesta história, este tal grupo de amigos procura um novo chapa para dividir o aluguel e um quarto do apartamento. Depois de zoarem com metade da cidade atrás de alguém com o mesmo espírito deles, encontram um camarada praça que, olha como é a vida, depois da primeira noite aparece morto em cima da cama.

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David (Christopher Eccleston), o mais sério dos três, é o tipo mecanizado e até meio inocente, mas que vai na onda bullying do companheiro de apê Alex (Ewan McGregor) e da namorada Juliet (Kerry Fox). O sujeito, mesmo com barba na cara e tudo mais, nunca havia visto uma pessoa morta de perto, até encontrar o tal cadáver debaixo do mesmo teto com uma mala recheada de dinheiro até a rolha.

Alex é o porra louca vazio. Amoral e cheio de si, o personagem de McGregor é o diabinho do canto esquerdo que instiga o trio a ficar com a grana do moribundo e dar cabo do corpo, enquanto Juliet é o pé mais centrado na realidade. Responsável por transpor na tela as dúvidas e vontades sujas da audiência, a garota, apesar de se interessar pelas possibilidades criminosas, não trata isso com tanta leveza quanto Alex.

Todo esse desvio de caráter, pronto para se rebelar contra a mesmice britânica, é levado pelo som eletrônico dos ingleses do Leftfield, que na época estavam lançando seu primeiro álbum. Aliás, Boyle tem dessas de saber usar o som dos sintetizadores em seus filmes. E nada mais rebelde-hippie-classe-média do que uma rave, não é verdade?

Com pouca grana e tempo em mãos, o diretor optou acertadamente por trabalhar quase que por completo em estúdio. Boa parte, dentro de um enorme galpão, onde foi construído o set de todo o apartamento. Por conta desta escolha, Danny Boyle ganhou uma puta liberdade de movimentação de câmera, podendo produzir takes que seriam impossíveis de serem feitos em locações.

Algumas destas tomadas são incrivelmente espertas e envelheceram muito bem (já posso chama-lo de velho?), vide aquela na cozinha, quando o trio discute se fica com a grana ou entrega pra polícia. Primeiro vemos tudo rapidamente por cima, mostrando a mala aberta com as notas embrulhadas por dentro, aos poucos a câmera se alinha aos personagens, deixando todos com metade do corpo tampado pelo dinheiro, dando a ideia de como aquilo está subindo pra cabeça deles. Esperto o cara.

A mudança de personalidade de David, apesar de parecer um pouco rápida por conta do ritmo frenético da projeção, é brilhante e faz sentido. Afinal, se você tivesse que cortar um corpo em vários pedaços contra a própria vontade, com certeza iria ficar um pouco mais desgostoso com a vida.

Caso entre na vibe e animae mesmo assistir ao filme, alugue ou compre o DVD ou Bluray. Neles têm alguns extras bem interessantes, como trechos que mostram o sensacional trabalho de direção de arte do longa (a ambientação do porão é brilhante até hoje, posso garantir) e também a inteligente escolha das ferramentas que os personagens usariam na trama para cerrar e cortar alguns corpos. Depois de pensar sobre isso, entrar em uma loja de equipamentos se torna uma tarefa bem mais divertida.

Prova de que estrelas e notas pra filmes não quer dizer muito às vezes, é o fato de que Cova Rasa, como obra, tem lá seu pequenos defeitos. Mas no meu caso, além do valor nostálgico, ainda conta bastante o gosto pessoal que tenho por tramas quase Hitchcoquianas como esta. Aí é com cada um.


Nota:[quatroemeia]

Kelson Douglas é editor chefe do site Altamente Ácido