Não morra antes de assistir: Crimes e Pecados

(Crimes and Misdemeanors) De Woody Allen. Com Woody Allen, Mia Farrow, Martin Landau, Angelica Huston, Alan Alda.

Crimes e Pecados é fantástico. É um filme que deixa certa sensação estranha no final, pois não se sabe ao certo o que o (sempre genial) diretor Woody Allen quis dizer: há esperança ou apenas uma visão niilista da realidade?

Alternando duas histórias – a do oftalmologista (Judah Rosenthal, vivido por Martin Landau) que se vê num impasse sobre como resolver o caso de adultério no qual se envolveu, e a do diretor de documentários nada reconhecidos (Cliff Stern, de Woody Allen) que se vê obrigado a filmar a vida do egocêntrico cunhado, enquanto se apaixona por uma das produtoras do projeto – Allen consegue falar de culpa, de amor, de religião, num jogo de morde e assopra que só um fã de Bergman conseguiria fazer. Os dois personagens que servem como pilares para a história têm de escolher: um pode se arriscar a ver sua família envolvida em um escândalo, ou pode tirar do caminho sua amante; o outro pode abrir mão do dinheiro que ganharia documentando a vida de uma pessoa que odeia, ou continuar fazendo seus filmes idealistas e nada lucrativos.

É duro assistir à Crimes e Pecados, assim como é pesado assistir à um Bergman. A diferença é que com o diretor sueco o soco no estômago geralmente vem acompanhado de uma enorme depressão no final. No caso do nosso nerd americano a dose de existencialismo vem com certa leveza, o que de certa forma traz a discussão toda a um plano mais possível. Me explico: se um fala da chegada da morte que vem buscar um cavaleiro que retorna das cruzadas por exemplo, o outro fala de histórias comuns, que poderiam ser a de qualquer um de nós.

Há outra comparação possível com um trabalho recente do diretor, Match Point. O paralelo existe, pois em ambos os filmes temos casos de assassinato e o problema da culpa. Mas os protagonistas são completamente diferentes (podemos esperar esse tipo de atitude de um alpinista social, mas não de um chefe de família com a vida estável), e no caso do filme de 2006 a via para que a discussão chegue até o espectador não é o personagem em si, mas o espectador mesmo, já que é ele que espera ansiosamente uma história que tome os caminhos mais convencionais: o do crime e do castigo, o do “aqui se faz aqui se paga”. Com o fim daquela história, vemos nossas convenções serem colocadas em cheque a partir de nós mesmos. Não é o caso de Crimes e Pecados.

É Judah Rosenthal que percebe haver algo de errado naquela lógica que lhe foi ensinada desde criança (já que teve criação judaica), “onde nada escapa aos olhos de Deus”, quando passa a se acostumar com o fato de que, o assassinato por ele comandado não será punido. O espectador apenas assiste, quando ele decide fazê-lo, deliberadamente. Então, de onde vem a culpa? O que caracteriza a humanidade? A capacidade de escolher ou um senso de conduta que delimite nossas ações tornando possível a convivência entre os homens?

Novamente ecos de Bergman aparecem, pois se Deus existe ele está calado, incapaz de agir sobre a realidade humana (há ainda uma bela homenagem à Morangos Silvestres, numa das cenas mais espetaculares do filme, onde Woody filma um diálogo forte, pesado, como um julgamento deve ser). O ceticismo inicial do personagem dá lugar ao sentimento de absurdo. “Só vivemos uma vez”, diz seu pragmático irmão. Então com o quê se preocupar?

Cenas sombrias, que estão de acordo com a condição dos personagens filmados se contrapõem a certo otimismo de Allen, representado na imagem de inocentes crianças numa festa de casamento. São esses rituais tão prosaicos que dão certo sentido à vida, quando realmente se acredita neles. E sempre há a tal esperança no futuro.

Allen também se revela um ótimo ator, na comovente cena em que se declara para a personagem de Mia Farrow, para logo depois sofrer uma desilusão. E a cena final, narrada por um estudioso sobre o qual Stern pretendia fazer um documentário, falando das possibilidades que podem fazer com o que homem continue vivendo e se agarrando a um último fio de esperança que lhe resta, pode soar ainda mais trágica, já que sabemos que ele se suicidou.

É porque é trágico e cômico que recomendo Crimes e Pecados. Assistam.