O Último Episódio Filmes de Plástico

Review O Último Episódio: quando Contagem vira Nárnia de VHS (e a amizade vence o boss final)

o ultimo episodio posterSabe aquele “coming of age” que você assiste sorrindo de canto de boca e pensando “caramba, eu já fui esse pirralho mentiroso com um plano impossível”? Pois é. O Último Episódio, novo longa de Maurílio Martins (Filmes de Plástico), chega como um coming of age mineiro, redondinho e delicioso de assistir, desses que aquecem o peito sem fazer chantagem emocional. É filme de periferia, de Contagem, mas com o coração apontado para qualquer um que já cresceu entre fita VHS, escola pública e amizade que salva a pele. Funciona para todo mundo porque amadurecer é universal; para quem é de Minas, tem um gostinho diferente de identificação — o sotaque, o quintal, o mimeógrafo, a feira cultural, o “uai, sô” que aparece como quem não quer nada e já vira afeto.

A premissa é simples e perfeita: Eric (Matheus Sampaio), 13 anos, solta uma mentira épica para impressionar Sheila (Lara Silva): ele teria a tal fita com o “último episódio” de Caverna do Dragão. A partir daí, a única saída é a mais cinema-de-boteco possível: juntar a galera, pegar a filmadora do pai e FAZER o episódio. Entra Cassinho (Daniel Victor), entra Cristão (Tatiane Costa), e o trio sai por Jardim Laguna catando locação, figurino, e coragem — porque inventar história é fácil; bancar a história é outra coisa.

A graça do filme está no equilíbrio: nostalgia pop sem firula e cotidiano de quebrada sem miserê. Maurílio e a Filmes de Plástico dominam essa equação desde No Coração do Mundo e Marte Um: a câmera está a um palmo do rosto dos personagens, mas o mundo ao redor lateja vivo. O design de produção é um achado: anos 90 ressuscitam com detalhes modestos e certeiros (telefone de disco, foto revelada, revista da banca, Doce de Mel ecoando ao fundo), e as brincadeiras de bastidor viram cinema dentro do cinema — meta-malandragem que dá liga ao plano do Eric e, sem querer querendo, também vira processo de luto por esse pai ausente/presente na câmera.

E como ajudam os personagens carismáticos. Eric é teimosia pura, dessas que batem de frente com a saudade e com a falta de atenção da mãe. Cassinho briga com o mundo e com a mãe religiosa, mas é coração mole quando precisa. Cristão tem o melhor arcabouço familiar e, talvez por isso, o olhar mais curioso do trio: ela é o cimento que cola os dois meninos quando a mentira ameaça desmontar tudo. Em volta, a diretora Simone (Babi Amaral) e Zena (Leonardo de Jesus) entram roubando cena, daquele jeito “eu conheço ESSA pessoa da minha escola/rua”, e a gente ri porque está rindo da vida, não de piada pronta.

Tem ainda a trilha de John Ulhoa e Richard Neves (Pato Fu), com Fernanda Takai regravando Qualquer Jeito: é pop mineiro colocado na medida exata, sem empanturrar a memória afetiva. E, olha, o filme é mineiro até o osso sem precisar carimbar “folclore”. É o tempo das conversas no portão, a cadência das frases, a economia de gestos — aquela sensação de que a cidade inteira cabe num quarteirão. Quando o trio corre atrás da tal fita que não existe, é Minas que corre junto, costurando bairro, escola e família.

Narrativamente, O Último Episódio escolhe a rota do crescer fazendo. Cada pequena missão (achar um elmo, pedir a câmera, conseguir um cenário) é também um passo de maturidade. A mentira vai testando essa amizade — e aqui entra o ponto mais bonito do filme: a vida coloca a amizade à prova, mas o bom-senso prevalece. Ninguém é punido com tragédia só para a história “ganhar peso”; o peso já está no olhar, nas faltas, nas broncas, na coragem de assumir que errou e seguir em frente. É um filme generoso: ri dos tropeços, abraça os limites, e encontra na cooperação de bairro — e no “vamos juntos” — a sua moral.

Se tem “mas”? Tem o “mas” das coisas boas: dá vontade de ficar mais tempo com o trio, de ver mais takes toscos do “episódio perdido”, de esticar uma cena ou outra que passa voando. Mas a direção do Maurílio sabe a hora de cortar na raiz para não virar colcha de retalho. O filme anda bonito, sem enrolar, e quando estreia a fita dentro do filme a gente já está ganho — por eles, pela cidade, por essa lembrança coletiva de infância costurada com durex.

No fim, O Último Episódio faz o que o título promete — e o que o seriado nunca fez: dá desfecho. Não ao desenho (que continua sendo o MacGuffin perfeito), mas a esse rito de passagem: a fita existe porque a amizade existe; o cinema acontece porque alguém teve a cara de pau de começar. É um “coming of age mineiro e delicioso”, desses que funciona para qualquer público, e que para quem é de Minas tem sabor de broa quentinha com café passado na hora. A gente sai do cinema com vontade de ligar para os amigos de escola, pedir a filmadora esquecida no guarda-roupa e inventar um plano mirabolante de novo — porque crescer, no fim das contas, é continuar jogando com as cartas que a periferia nos deu e achar poesia no improviso.

Filmes de Plástico transforma nostalgia pop em cinema de periferia com afeto, humor e pertencimento. É pequeno nos meios, gigante no coração. E, sim, tem um gostin especial de casa.