por Selhe Moreira
Os Roses – Até que a Morte os Separe é o tipo de comédia que chega com um sorriso no rosto e escondendo uma faca atrás das costas — e, sinceramente, a gente adora quando isso acontece (ao menos no início do longa, onde o brit wit se sustenta à perfeição). Dirigido por Jay Roach e com roteiro de Tony McNamara (a mente por trás de A Favorita e Pobres Criaturas), o filme é uma releitura afiada e irritantemente moderna de A Guerra dos Roses, o clássico de 1989 baseado no livro de Warren Adler. Só que aqui, a guerra conjugal ganha uma nova camada de sarcasmo, desejo e cinismo bem no meio do caos contemporâneo e das ambições que não cabem numa casa de dois andares.
Olivia Colman e Benedict Cumberbatch estão britanicamente afiados como Ivy e Theo Rose, um casal que parece saído de uma comédia screwball dos anos 40, mas com a acidez de um tweet viral sobre divórcio milionário. Ela é uma chef de cozinha talentosa, com fome de sucesso (literal e metaforicamente). Ele, um arquiteto que vê seus projetos – e a própria vida – desmoronando tijolo por tijolo.
O filme diz a que veio quando começa com o casal em uma sessão de terapia, onde o exercício de listar as “10 coisas que amam um no outro” tomam o rumo de insultos tão mordazes e sofisticados a ponto de fazer com que a terapeuta cruze um limite ético: ”Não acho que vocês sejam capazes de resolver seus problemas”. Ao longo de 1 hoa e 45 minutos, flertes se transformam em farpas, provocações viram estratégias, e a troca de lugares entre o sucesso profissional dos dois serve de combustível para um jogo de poder tão sagaz quanto corrosivo – e é aí que o filme ao mesmo tempo brilha e fica à beira de cair no clichê acusatório da mulher executiva bem sucedida que negligencia os filhos e o marido. Mas desvia disso – por pouco.
Os Roses não está aqui pra fazer carinho em quem quer esperança nas relações humanas. Esquece aquela história de final feliz previsível: esse é um campo de batalha onde o amor e o ego se enfrentam com diálogos rápidos, humor ácido que beira o sadismo em todos os casais da trama. A direção de Roach combina charme retrô da fonte onde bebe com inquietação moderna, e o texto de McNamara é afiado como uma faca de cozinha cara: elegante, perigoso e preciso.
O filme é uma reconfiguração esperta, feita sob medida para os tempos de relacionamentos fluidos, carreiras instáveis e desejos que mudam mais rápido que algoritmo de rede social. Fala sobre como a desconexão e a falta de diálogo honesto pode atropelar o romance, como a competição bagunça o equilíbrio da parceria e como dois adultos aparentemente inteligentes podem se destruir … sem nenhuma maturidade ou regulação emocional, claro. Mais millenial, impossível. (O que pode te dar a sensação de estar dando uma volta numa trend de rede de vídeos ou textos em fio…)
Nem tudo é perfeito. Às vezes, o filme se empolga demais com sua própria esperteza e o roteiro parece mais interessado em mostrar o quão sagaz é do que em explorar a química entre os protagonistas — especialmente na metade do longa, onde a mordida perde um pouco da crocância. Mas quando Colman e Cumberbatch estão em sintonia, a mágica acontece: os diálogos ganham peso, ritmo, volume, uma sinfonia onde os olhares cortam mais do que palavras, e o humor se equilibra com o drama de forma deliciosamente desconfortável.
É impossível não amar a cena em que mais uma vez Olivia Colman imprime seu timing perfeito e textura de texto quando, na casa caríssima e super high tech projetada e construída por Theo, Ivy oferece um Negroni ao sistema de IA — batizado de HAL, vejam vocês —, e ele responde: “Eu não tenho vontades ou necessidades”. “Casa comigo” é a resposta disparada à queima-roupa, num daqueles momentos de ouro: cômico, triste, e dolorosamente humano ao mesmo tempo.
O elenco coadjuvante também contribui para essa uma quebra no ritmo e tom prometidos no início do longa. Mira em apresentar um contraponto das crises conjugais sob o ponto de vista das diferenças culturais e entrega mais um beisteirol americano 40+ com as caras de sempre (Andy Samberg e Kate McKinnon são o casal de amigos mais próximos numa reedição de tudo já visto em algum episódio de Saturday Night Live). Jamie Demetriou e Zoë Chao aparecem com subtramas discretas, que também não acrescenta tanta camada á trama. A exceção talvez deva ser feita à cena do jantar onde é o par protagoniza um diálogo que serve mágoa banho-maria e ressentimento confit. Mas de um jeito bastante infantilizado.
No fim das contas, Os Roses é uma comédia ácida, contemporânea e inteligente, que devemos admitir, não tem medo de mostrar que o amor moderno pode ser uma batalha — com armas sofisticadas e algumas baixas pelo caminho. Mas também justamente nisso é que às vezes se perde, ensimesmado no seu tempo. Ainda assim, é impossível não torcer para que, no meio de tanto caos, esse casal se beije no final. Ou se esfaqueie. Ou os dois.
Fresco, espirituoso e cheio de referências para cinéfilos atentos, Os Roses é aquele tipo de filme que faz você rir, refletir, perguntar se devia estar rindo mesmo e duvidar se ainda acredita no “felizes para sempre”. Servido com cinismo, veneno e um Negroni gelado é uma pedida interessante. Ou não.

