SE EU MORASSE NO RIO DE JANEIRO, CERTAMENTE IRIA AO CINEMA numa frequência muito maior. Após um encantamento inicial provocado pelo Cine Odeon, este segundo dia teve protagonismo do Roxy e do Cine Joia. Enquanto o primeiro é um cinema de rua poderoso e movimentado, muito além daquela imagem obsoleta construída sobre este segmento nos últimos anos, o segundo é aquilo a que daria a definição de cinema-de-rua-em-shopping, dotado de um charme mais singelo em sua única sala emparedada por uma cortina e ocupada por poltronas coloridas. O Festival do Rio está muito bem representado.
2. Barakah com Barakah ★★★★
“Vocês viveram ao máximo, mas não defenderam os direitos da nossa geração.”
O desabafo de Barakah (Hisham Fageeh), direcionado ao seu avô, é o reflexo de um sentimento engasgado em muitas dessas “gerações” que, espalhadas pelo mundo, veem justamente aqueles que há algumas décadas tiveram que lutar aguerridamente por seus direitos ocupando atualmente o poder e utilizando-o, contraditoriamente, para a formação de uma conjuntura social mais conservadora, opressiva e que restringe os direitos dos que hoje são os jovens.
Claro, é simbólico que, entre os contextos concretos para a presença deste sentimento, os eventos de Barakah com Barakah aconteçam na Árabia Saudita, possibilitando, de dentro para fora, a exposição de como este é amplificado num cenário nacional severamente afetado pelo fundamentalismo religioso, alçado ao poder de modo a impor restrições duras às liberdades individuais, sobretudo, das mulheres – bem como, nos expõe o roteiro de Mahmoud Sabbagh (também responsável pela direção), dos muitos outros grupos sociais.
Os dois Barakahs – ou Barakah e Bibi (a belíssima Fatima AlBanawi) – são expoentes fortes da coletividade deste sentimento. Ele, um jovem apegado aos tradicionalismos e conformado prestador de serviços para um órgão estatal de aplicação das leis; ela, alguém que, embora influenciadora popular – sua conta no Instagram é notória – e “ocidentalizada” quanto aos hábitos, por temer jamais conseguiu desvencilhar-se dos estabelecimentos morais de sua família ou praticar uma subversão de fato, ainda que as incentive digitalmente. Duas personagens que, surpreendentemente carismáticas e críveis, afastam-se em termos de personalidade por razões evidentes, mas complementam-se precisamente por dividirem uma característica muito mais profunda e enraizada: o anseio da liberdade.
Tão somente em razão desta relação, Bibi assimila uma realidade mais humilde, afastada das redes sociais, todavia capaz de finalmente fazê-la sentir-se legitimamente acompanhada e compreendida; por sua vez, é a mesma razão a que conduz Barakah, enfim, a questionar o que o leva a praticar a imposição coercitiva de tantas leis, regras e convenções sem apoiá-las eticamente ou ao menos entendê-las – numa metonímia daquilo em que se transformaram as instituições de autoridade pública -, assim como a indagar contundentemente qual foi o caminho que levou seu país, outrora mais diverso e tolerante, a tornar-se um reduto de moralização, conservadorismo e centralização religiosa, no qual expressar-se livremente, trocar afeto, divertir-se ou, pasmem, “ser mulher” em público, são práticas ilegais. O conflito entre as características de dois seres humanos distintos, sua interação, foi o revelador de tal caráter em ambos. Mais do que isso, a legítima e intacta relação humana em prática foi a única maneira encontrada por aqueles dois indivíduos para, enfim, alcançarem uma forma honrada de luta contra aquele “círculo” ao qual todos estamos irremediavelmente sujeitos – por entendê-la e concebê-la desta forma, Barakah com Barakah é admirável e inspirador.
3. Eis os Delírios do Mundo Conectado ★★★
O aguardado documentário de Werner Herzog rodeia a história da internet sob ao menos dez óticas distintas, porém complementares – desde sua criação, passando pelo otimismo da disseminação do conhecimento, até as consequências negativas de seus excessos na atualidade.
O nono segmento, por exemplo, suscita exatamente a discussão fundamental – deveria ser feita mais frequentemente, diga-se – sobre como, embora a virtualidade seja um instrumento imprescindível e de inegáveis avanços, sua apropriação se dá de maneira equivocada pela geração que a comanda na atualidade – e é perspicaz que o seja no mesmo cenário da sequência de abertura, uma celebração da criação da ferramenta. Há questões, no entanto, que mereciam mais espaço, sendo o caso do debate acerca da privacidade e da problemática alteração de noções de ética propiciada pelo anonimato e pela curiosidade mórbida impulsionados pelo uso coletivo da internet – temática que, embora abordada no quinto segmento, não é tratada com a profundidade necessária, tornando-se secundária em Eis os Delírios do Mundo Conectado. Esta conclusão surpreende, sobretudo, em decorrência de seu caráter destoante com o posicionamento de Herzog, que, em momentos distintos da produção, inteligente e ironicamente – mesmo divertidamente – direciona indagações pertinentes às visões mais otimistas da virtualidade, provocando uma reflexão potente a respeito dos meios tecnológicos e dispositivos móveis enquanto extensões do corpo humano e da lógica invertida à qual estamos nos submetendo, tornando-nos dependentes e repetidores de tais extensões – que o digam os robôs planejados para a superação dos desempenhos humanos.
4. Histórias dos Dois que Sonharam ★★★
A abertura metalinguística revela parte das intenções desta coprodução México-Canadá filmada sem cores: uma mixagem entre a ficção e o documentário que decidiu por ser assim com claras funções significativas. O cotidiano de uma família cigana oriunda da Hungria, residente no Canadá e sem noções definitivas quanto à permanência resulta numa amálgama de sofrimento, monotonia, senso comunitário e criação fabulosa humanamente traduzida por este Histórias dos Dois que Sonharam, distante de estereótipos ou atribuições comparativas e fiel à proposta cinematográfica naturalista.
Todavia, seus desígnios enquanto realização artística também guardam responsabilidade por atribui-la um certo sentimento de vazio, de indefinição quanto àqueles determinados a serem os objetos de estudo da narrativa; falta, talvez, certa objetividade neste tocante. Não ofusca, contudo, o interessante diálogo, organicamente arquitetado, inserido na relação entre o monótono cotidiano dos protagonistas, a simplicidade de suas rotinas, suas heranças de sofrimento e o abrigo na ficção, a elaboração de um “dia a dia alternativo”, os boatos lendários e histórias aumentadas a respeito da vizinhança – sem qualquer juízo de valor atribuído, substituindo inteligentemente o julgamento pela percepção e compreensão -, desenvolvendo um elo estreito entre o real e o inventado, possivelmente tanto quanto o vínculo familiar e comunitário que durante algum tempo acompanhamos.
“Palavras nos traem, e nós as traímos.”
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Até amanhã.