Livre

A premissa de Livre é conhecida: isolada da sociedade em meio à natureza, sua protagonista atravessa um arco de auto-descoberta em que, expurgando os fantasmas do passado e aprendendo a valorizar o que realmente importa, redefine os rumos de sua vida. Mas se filmes como Náufrago e Gravidade preferiam isolar o espectador no tempo-espaço de seus personagens sem permitir um segundo sequer de “respiro”, este novo longa dirigido pelo canadense Jean-Marc Valleé (Clube de Compras Dallas) prefere trilhar um caminho semelhante ao de Danny Boyle em 127 Horas, investindo em flashbacks, cenas de sonho e digressões constantes que nos informam acerca de suas dores e traumas – uma estratégia narrativa que, mesmo não sendo a melhor, funciona relativamente bem aqui.

Escrito por Nick Hornby a partir da autobiografia “Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail”, de Cheryl Strayed (que aqui ganha o rosto de Reese Witherspoon), o longa se concentra na experiência de sua biografada ao fazer a trilha do título do livro original, que contorna o Oceano Pacífico do México ao Canadá e atravessa montanhas, matas e desertos. Trazendo um trauma envolvendo o ex-namorado Paul (Sdoski) e outro envolvendo a mãe Bobbi (Dern) na gigantesca mochila que carrega nas costas –algo que antecipamos logo no início da projeção através de brevíssimos flashbacks que invadem a tela e qie trazem o ex-casal transando e a mãe cantando e dançando alegremente -, ela põe o pé na terra para testar seus próprios limites emocionais e encontrar um novo sentido para a sua existência.Crítica Livre Reese Whiterspoon

Trazendo a melhor atuação de Reese Witherspoon em anos (e nós só acreditamos nela como uma menina humilde do interior por sua decisão de, nos últimos anos, “lavar” o rosto da persona de patricinha de comédias românticas e fazer papeis menores em filmes independentes como o ótimo Amor Bandido e mesmo o desastroso Sem Evidências), Livre é beneficiado ainda pela atuação extremamente sensível da sempre competente Laura Dern, que arrebenta o espectador com uma cena simples e aparentemente despretensiosa em que Bobbi explica, enquanto lava a louça na pia, o que a faz sorrir e ser alegre daquele jeito mesmo enfrentando uma série de dificuldades na vida e tira do roteiro a necessidade de investir no drama barato – o que, não dá para negar, Hornby até tenta fazer aqui e ali.

Exagerando também ao tentar conectar qualquer música que Cheryl ouça ao longo da projeção com algum momento importante de seu passado (e revelando assim uma estratégia não muito sutil de seu roteiro), o longa acaba sendo extremamente eficiente em momentos que boa parte do público julgará apenas secundários, como ao retratar pacientemente as dificuldades enfrentadas pela protagonista em cada novo desafio que sua empreitada lhe oferece (na mais divertida delas, Cheryl termina a preparação de sua mala – que inclusive torna-se um alívio cômico durante a narrativa devido a seu tamanho desproporcional – e leva longos minutos para colocar-se em pé com ela nas costas, caindo para um lado e para o outro e rolando sobre ela diversas vezes até conseguir o mínimo equilíbrio para erguê-la).

Rodado em paisagens belíssimas e apresentando personagens coadjuvantes razoavelmente interessantes que contribuem claramente com a evolução da protagonista (uma convenção obrigatória do road movie), Livre pode até não contar uma história particularmente original, mas apresenta uma personagem complexa e tridimensional que, se não conquista nossa simpatia logo de cara graças a suas decisões irresponsáveis e, principalmente, à maneira arrogante e cruel com que trata não apenas do enorme impacto emocional que as tragédias que a vida colocou em seu caminho lhe causaram, mas também do inevitável processo de transformação com o qual a mesma vida lhe presenteou.

Poster Livre - Mostra de SP

Livre (Wild, EUA, 2014). Dirigido por Jean-Marc Valleé. Escrito por Nick Hornby. Com Reese Witherspoon, Gaby Hoffmann, Laura Dern, Michiel Huisman, Kevin Rankin, Thomas Sadoski, Charles Baker e W. Earl Brown.