Crítica: O Abutre

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 SOMOS FASCINADOS POR PRODUÇÕES QUE NOS INFILTREM profundamente num universo ou ocupação. Para realizar esta retratação de maneira legítima e eficiente, é necessário despir-se do romantismo e construir uma narrativa sincera, retratando inclusive os lados sujos de tal campo retratado. Este é o segundo maior trunfo de O Abutre; afinal de contas, um Jake Gyllenhaal inspirado no papel protagonista torna-se imediatamente uma notável qualidade.

O ator é o encarregado de dar vida ao implacável Louis Bloom no projeto. Na primeira sequência de aparição do personagem, ele surge retirando um arame de metal de uma cerca; quando um segurança o aborda, este não hesita em agredi-lo antes de a câmera afastar-se e expor apenas a noite urbana na Califórnia. Dan Gilroy, diretor estreante, demonstra habilidade e coragem para definir seu protagonista já na cena inicial: um sujeito inescrupuloso. Coragem, sobretudo, por saber que Bloom é um perfeito cínico – chega a ser assustadora sua habilidade para passar-se por um jovem confiável e cheio de sonhos frutuosos quando necessário.

Dito isto, Bloom acaba sendo o tipo perfeito para a realização do produto jornalístico, uma vez que equilibra a inescrupulosidade necessária para, friamente, presenciar a violência e até mesmo provocá-la para alcançar notícias que “dão audiência”, com o cinismo para subverter esta personalidade, passando a essencial credibilidade. E, antes que um jornalista possa se ofender ao ler este parágrafo – como se já não estivesse ofendido pela fragilidade estrutural deste texto -, esclareço que o ofício realizado por este personagem não é o legítimo jornalismo, porém, o sensacionalismo, a informação unicamente como produto comercial, sem a preocupação com a credibilidade – é como o sujeito que filma um sujeito acidentado ao invés de ajudá-lo (exatamente como Bloom faz, para posteriormente vender o vídeo e exibi-lo nacionalmente).

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Aliás, o protagonista sequer caracteriza-se como um jornalista. Ele é um nightcrawler, alguém que vaga pela noite em seu carro, acompanhado de um rádio na frequência policial e uma câmera, em busca de ocorrências que possam virar boas notícias para serem vendidas. E repare num dos primeiros diálogos mantidos entre ele e Nina (Rene Russo), a produtora televisiva: um assassinato envolvendo um pobre ou um latino num bairro pobre não é notícia, mas um num bairro rico, envolvendo alguém rico e branco, é. Esta doutrina denuncia todo o princípio jornalístico da grande mídia num panorama atual, o sistema de privilégio de classes, a celebração da violência, da audiência e do sensacionalismo – e Louis Bloom é obcecado por este princípio.

A obsessão é a chave para a composição deste fascinante personagem, e Jake Gyllenhaal certamente encontrou-a. É interessante notar esta vertente na carreira do ator: se há um ano atrás, o ator interpretou um personagem absolutamente obcecado por seu trabalho em Os Suspeitos, o mesmo ocorre neste O Abutre, mas de maneira completamente oposta – a obsessão do detetive Loki era pela justiça, enquanto a de Bloom é pelos princípios que possui, tanto da busca pela notícia, quanto do controle absoluto. Seu Louis Bloom é um sujeito repleto de sociopatia, que parece possuir tudo sob seu controle, tanto no âmbito profissional quanto pessoal, como na execução fria de um plano, tornando-o capaz de realizar qualquer crueldade para atingir seus objetivos. A sequência num posto de gasolina, na qual o personagem elogia Rick (Riz Ahmed) para, logo depois, realizar uma pacífica ameaça a este, é assustadoramente convincente.

Se Gyllenhaal compôs a obsessão de Loki com uma infinidade de trejeitos que conferiam-no uma complexidade tremenda, volta a apostar acertadamente numa performance que aposta no minimalismo para a composição de Bloom, equilibrando uma deliciosa ambiguidade de personalidade – ameaçador com um sorriso no rosto e sem levantar a voz, seu personagem exerce um inexplicável controle sobre todos aqueles que o cercam. (Espero, então, que este controle se alastre até os votantes de premiações, pois o reconhecimento ao ator por este trabalho é algo necessário.)

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Embora esta característica torne absolutamente crível sua capacidade de atingir seus objetivos, o roteiro de Gilroy falha na construção da verossimilhança ao passar muito aceleradamente pela ascensão profissional do protagonista – evidenciada pela aquisição de um veículo muito mais caro do que seu anterior -, uma decisão arriscada para apenas expor uma pura evolução, tornando-o imune ao fracasso, conceito que é reforçado pelo dispensável diálogo final – “gosto de dizer que, se você está me vendo, está tendo o pior dia de sua vida.” Para evidenciar o sucesso absoluto das decisões do protagonista, ainda há a criação de uma relação de antagonismo exagerada entre Louis e Joe Loder (Bill Paxton), apesar de provar-se, depois, parcialmente justificada para obrigar Bloom a agir cruelmente.

E afirmo isto apesar de estar tentado a apenas celebrar um texto que, em certo ponto, destila deliciosamente um diálogo passado entre Louis e Nina, no qual este solta frases dignas de uma obra de auto-ajuda sobre a necessidade do aprendizado e a celebração do sucesso profissional para convencer a produtora televisiva – e, ao unirmos nosso conhecimento prévio do personagem com um semblante quase sorridente na face de Gyllenhaal, notamos que a intenção de Gilroy neste momento é quase satírica.

O roteirista também expõe suas habilidades como diretor, ao dispensar inteligentemente o uso da tão frequente técnica das câmeras na mão, um recurso que poderia confortavelmente ser aderido dentro da trama, mas não possuiria função narrativa legítima. Para coroar seu trabalho, no terceiro ato o realizador ainda entrega uma sequência de ação admirável, na qual uma perseguição envolvendo o carro do assassino, outro da polícia e o de Bloom é narrada sem artifícios ou exageros, utilizando-se de planos abertos simples numa sequência capaz de conferir tensão e verossimilhança à narrativa.

A crueza desta sequência é tematicamente a mais adequada à uma narrativa que adota esta proposta em todo o seu andamento – e ainda bem que o faz.

nota final: [trêsemeia]

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