Ensaio sobre a Cegueira

Dirigido por Fernando Meirelles. Com: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Danny Glover, Yusuke Iseya, Yoshino Kimura, Don McKellar, Mitchell Nye, Gael García Bernal, Susan Coyne, Sandra Oh, Maury Chaykin, Mpho Koaho.

Desde a primeira cena de Ensaio sobre a Cegueira, nova produção de Fernando Meirelles, percebe-se o tom urgente da narrativa de Saramago, autor do best seller, no qual o filme foi baseado. “Estamos prestes a ver o primeiro homem cego”, pensei eu, ao ver os closes nos semáforos. É um tom realista e fantasioso ao extremo, que pontua todo o filme, o que por si só, já mostra algumas diferenças com relação aos outros filmes de Meirelles (os igualmente ótimos Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel).

Naqueles, a busca da realidade era a razão de ser de cada quadro, da fotografia, da edição… Mas em Ensaio, é o clima de fábula que direciona a utilização destes recursos já tão caros e característicos do diretor: a fotografia chapada (aqui excessivamente, o que alguns momentos pode até incomodar), a edição rápida (que dá um ritmo indispensável para a eficácia da história), os closes nos rostos dos atores (criando planos belíssimos, como o reencontro do casal oriental). Tudo nos mostra que a situação pela qual passam aqueles personagens é imaginária, ao mesmo tempo em que, ao experimentá-la junto com eles durante a projeção, o espectador sinta um pouco daquela realidade, possível dentro do universo concebido por Saramago.

Em vários momentos não se consegue ver claramente: ou os personagens estão envoltos num clarão (que lembra a “cegueira branca”), que aos poucos revela o que está sendo filmado, ou está tudo branco ou negro demais… Há a rápida cena (pra mim uma das melhores do filme) em que o garoto tropeça numa mesa que, a princípio, não estava lá: grande sacada desse inventivo diretor, fazendo com que o espectador perceba um pouco do que é não ver as coisas, algo tão banal nas nossas vidas.

A utilização de espelhos, durante a primeira parte do filme talvez tente mostrar os últimos momentos em que os personagens se vêem, pois, ao entrar na segunda parte da narrativa, é o clima sombrio que toma conta da tela. Tanto pela ambientação do abrigo onde os cegos são “depositados” sem nenhum cuidado, tendo como único contato com o mundo exterior uma gravação que lhes prescreve algumas regras de convivência no lugar; ou pela forma como as relações entre os infectados se torna insuportável quando um deles se declara “o rei da ala três”, um rei déspota, diga-se de passagem, dando ordens absurdas, e pedindo coisas inimagináveis numa situação como aquela, para fornecer comida às outras alas (e a tal cena do estupro coletivo, amenizada por Meirelles, ainda assim é chocante).

Aqui cabe falar da interpretação do elenco, aliás, de Julianne Moore: o filme é dela. Sua atuação é fantástica, desde o princípio momento em que aparece, como uma dona de casa dedicada a seu marido, até os momentos duros que tem que enfrentar por ser a única que enxerga em meio a uma realidade onde qualquer um talvez preferisse ser cego. Seu olhar de cansaço frente toda a situação, seu choro contido, sua violência quando esta se faz necessária, e sua feição de paz, quando tudo aquilo parece ter passado. Atuação digna de Oscar.

E por falar nesta última parte do filme, onde as coisas parecem ter se resolvido, é de uma beleza simples e por isso mesmo emocionante: depois de uma carga forte de dramaticidade, de luta pela vida, há uma espécie de redenção para aqueles personagens, que souberam conviver entre si, e encontraram um amor que os unisse numa espécie de comunidade em que todos prezam pelo bem estar do outro. As cenas em que estão reunidos na casa do médico, e a cena em que o primeiro homem cego retoma a sua visão já são belas por isto: pela leveza em contraposição com o que havia sido visto antes.

E quando vemos a personagem de Julianne Moore dizer estar cega (pela voz do narrador Danny Glover, claro), seguido de um rápido corte para um plano geral da cidade onde se passa a história, só há uma coisa na qual podemos pensar: esperança.

Um ótimo filme, e que merece ser visto após uma leitura da obra de Saramago.