Ela

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A VIDA INTEIRA PROCURAMOS UMA PESSOA QUE NOS COMPLETE DE VERDADE. Vivemos experiências boas, muitas outras ruins, mas sempre acordando no dia seguinte dispostos a nos arriscar novamente até encontrar a tal da felicidade, que dizem por aí só ser real quando compartilhada. Vítimas dessa lei cruel, somos obrigados a insistir na busca eterna pelo amor, mesmo sabendo das dificuldades, e que alguns de nós simplesmente faltaram em todas as aulas sobre se relacionar com alguém. O cineasta Spike Jonze certamente sabe muito bem como é se sentir deslocado, afinal de contas seus dois primeiros trabalhos tratavam justamente da falta de amor próprio que nos sujeitamos diante uma paixão avassaladora e com prazo de validade, e especialmente de retratar pessoas solitárias que aprenderam a lidar apenas consigo mesmas. Em Ela (Her), Jonze acerta mais uma vez e, digamos, consegue até provar um pouco do otimismo cego que atinge os corações dos infelizes apaixonados.

Ela conta a história de Theo (Joaquin Phoenix), um artista (ele é um escritor) solitário que ainda sofre com o fim do seu relacionamento com a esposa (Rooney Mara). A trama se passa num futuro próximo, em que a tecnologia está incrivelmente avançada e modificou ainda mais os nossos comportamentos pessoais. Se hoje existe apenas o temor que os humanos se tornarão andróides plugados o dia inteiro, o roteiro de Ela mostra como seria viver nessa realidade. Todo esse avanço acaba colocando em cena o sistema operacional (dublado por Scarlett Johansson) que protagonizará o romance ao lado de Theo.

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Logo de cara, a primeira coisa para se destacar no longa-metragem são as cores fortes, que já marcavam forte presença no pôster. Theo usa roupas de tons berrantes, sempre um vermelho ou um rosa, e tudo está em harmonia completa com o universo futurista do roteiro de Jonze, que é a segunda coisa que merece ser louvada. O diretor acerta em cheio num texto que consegue ser ingênuo, sensível, apaixonante e destruidor. Jonze sabe contar a sua história com eficiência, e ele é tão cruel com a sua narrativa que se torna um verdadeiro desafio não desabar com a conclusão da história, que lembra um pouco E.T. – O Extraterrestre, de Steven Spielberg. E por fim, chegamos ao momento de destacar as atuações do elenco estelar reunido pelo diretor.

Phoenix dispensa apresentações, e enquanto muitos dizem que a maior injustiça do Oscar 2014 foi ignorar Tom Hanks (Capitão Phillips) ou Robert Redford (Até o Fim), eu digo que a maior injustiça foi esnobar o ator novamente. Se em O Mestre, ele já nos forçava a reparar em tudo que acontecia em cena, desta vez somos tomados de assalto pela fragilidade mental de Theo, um homem que acorda para um trabalho medíocre, e reconhece os erros que fizeram o seu relacionamento chegar ao fim. Theo é uma espécie de personagem semelhante aquele que John Cusack interpretou em Quero Ser John Malkovich, com a diferença de ser uma boa pessoa e não ser doentio. Mas ele sofre por amor, por suas dificuldades sociais, por não se sentir apto a viver de verdade. Ele é o cara que apenas sobrevive. O que representa um grande contraste com as cores vivas que o personagem exibe durante a trama. Mas é Scarlett Johansson que rouba a cena em Ela. Sem aparecer em nenhum momento, a atriz mostra que a sua beleza é apenas um detalhe, e que sabe muito bem realizar personagens marcantes. Existem dois diálogos de tirar o fôlego: quando Sam conta sobre os seus sentimentos e depois quando faz o desabafo final para o seu namorado. E outra cena curiosa é a metáfora para o ciúme que passa consumir o casal: sem nenhuma maldade, aparentemente, Sam apresenta o namorado para um outro sistema operacional. Theo conversa com os dois enquanto a câmera mostra a chaleira fervendo no fogão. Ou seja, era o começo do fim, bem ali.

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A música tem papel fundamental na trama, incluindo até mesmo um breve dueto entre os protagonistas para “The Moon Song”. A composição é de Karen O, parceira de Jonze desde que cuidou da trilha sonora de Onde Vivem os Monstros, a vocalista da banda Yeah Yeah Yeahs.

Logo que se descobre apaixonado, e completo, Theo entra de corpo e alma num relacionamento fantasioso, cheio de cores e sonhos. As cobranças, a dor, o medo, nada disso existe na cabeça dele, que se convence estar vivendo o namoro perfeito com alguém que, embora nunca estará presente fisicamente, o preencheu da maneira que mais lhe importava: supriu a sua carência e entendeu/aceitou quem ele realmente era. O amor de Theo e Samantha dá origem a uma das cenas mais lindas de Ela: ao som de uma versão de “Supersymmetry”, do Arcade Fire, Theo corre de olhos fechados por um parque e se diverte horrores, confiando apenas na voz de Sam para se guiar. Num momento tão doce e sensível, Jonze consegue apresentar com eficiência o quanto o seu protagonista está apaixonado e confiante de estar lidando com o amor de sua vida.

Infelizmente, como na vida real, o amor deixa de ser perfeito aos poucos. Theo começa a perceber as suas limitações como humano e que nunca conseguirá acompanhar a inteligência e o desenvolvimento acelerado de Sam, que independente de ser uma máquina, age como uma pessoa comum ao procurar um par que a completasse mais. É curioso observar a entonação vocal de Johansson, que faz a sua personagem fracassar numa tentativa de disfarçar que algo estava acontecendo (e aí outro grande mérito da obra, pois na vida real é exatamente assim que acontece. A hesitação na voz é pior que qualquer afirmação. Quem ama, simplesmente sabe que há algo errado) e logo entra num longo desabafo sobre a sua “promiscuidade”. E se Johansson faz um trabalho espetacular com a sua atuação, Phoenix não fica atrás e, mesmo contando com suas expressões corporais todas, encanta ao escancarar o medo e a fragilidade de Theo ao preferir não saber detalhes do que a sua amada estava fazendo antes de conversarem.

O amor, mesmo quando é sentido à distância, machuca. Dilacera. É poesia.

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O grande poder de Ela é capturar a essência do sofrimento diante o fim de uma relação considerada eterna. As pistas são lançadas aos poucos, e nós, como espectadores, começamos a juntar os detalhes para imaginar que o pior se aproxima. E mesmo assim, ficamos apreensivos e lamentamos quando tudo acontece da maneira como imaginado. O surpreendente é que a aparente “previsibilidade” em nenhum momento é interpretada como um problema ou um defeito do longa-metragem. Isso por conta da atenção e sutileza com que a narrativa nos é apresentada. O inevitável fim da relação perfeita de Sam e Theo acontece devagar, aos poucos, e somos sugados para o meio dessas emoções. E mais ainda, Jonze entende a solidão, a doença da alma, e o que faz Theo preferir uma relação com alguém que não existe de verdade. Apenas mais uma maneira de continuar sobrevivendo sem precisar de fato viver.

Ela virou facilmente o meu filme favorito do Oscar 2014, e com certeza estará na minha lista de melhores do ano. Perde tecnicamente para 12 Anos de Escravidão e (talvez) Clube de Compras Dallas, mas não enfrenta a concorrência de ninguém no que diz respeito a realmente fazer o espectador sentir a história, se apaixonar pelos personagens para logo depois sofrer por eles. Spike Jonze foi quase tão cruel quanto a vida real. E quando uma obra consegue fazer isso, você precisa lhe dar o seu devido valor.

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Título original: Her
Direção: Spike Jonze
Gênero: Romance
Roteiro: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Phoenix , Scarlett Johansson , Amy Adams , Olivia Wilde , Rooney Mara
Lançamento: 14/02/2014
Nota:[quatroemeia]