Filme: Fome (Mostra de São Paulo 2015)

fome

Nos primeiros minutos de Fome, acompanhamos o mendigo vivido (com extrema delicadeza e inteligência) por Jean-Claude Bernardet enquanto este caminha lentamente pelas ruas do centro de São Paulo. Nenhum evento particularmente notável ocorre durante um bom tempo, e o que o filme faz é simplesmente obrigar-nos a olhar para um personagem do qual costumamos virar o rosto em nosso dia-a-dia – e o caráter experimental do projeto continuará se revelando ao longo de toda a projeção.

Escrito e dirigido por Cristiano Burlan, o longa mistura as cenas ficcionais do cotidiano desse personagem e entrevistas com verdadeiros moradores de rua que, feitas pela estudante (ficcional) interpretada por Ana Carolina Marinho, tentam investigar, em primeiro lugar, as razões que levam aquelas pessoas àquela situação, mas também os medos, esperanças (se é que ainda resta alguma) e inquietações desses seres humanos vistos por muitos como parasitas dos grandes centros urbanos – uma constatação que o filme faz tanto através de seus atores quanto de um taxista absurdamente preconceituoso que pode ou não (acredito que não) ter tido seu repugnante discurso de ódio flagrado por uma câmera escondida estrategicamente posicionada no banco de trás.

Bem intencionado, mas trilhando uma linha fina que separa o engajamento e a hipocrisia, Fome merece aplausos por reconhecer que, no final das contas, um filme será somente um filme – e que falar sobre o assunto, tentar conscientizar as pessoas ou mesmo oferecer dinheiro ou comida para moradores de rua não mudará em nada a realidade em que eles vivem (e é decepcionante que, em outro momento, o próprio filme seja “pego em flagrante” ao transformar o convite da Marinho a Bernardet de jantar em sua casa como atestado de autenticidade de seu discurso).

Chega a ser curioso, aliás, que o longa só funcione plenamente em momentos em que a arrogância da burguesia branca é flagrada quase que involuntariamente: é óbvio que o propósito do diretor de levar Bernardet para pedir dinheiro no farol é filmar o corredor de janelas fechadas que o espremem em uma espécie de corredor da morte a céu aberto, mas as implicações de colocar um europeu, de classe econômica elevada e representante da elite culta na “pele” de um representante da “escória” – e vê-lo receber desprezo por não estar, naquele momento, trajando vestes condizentes à sua posição social – são múltiplas e aterrorizantes por revelarem o pior de nossa natureza como espécie.

Esforçando-se, no meio do caminho, para refletir também acerca da arte de pensar representada pela pesquisa acadêmica e até dos caminhos da crítica cinematográfica contemporânea (uma decisão que enfraquece a força do projeto, apesar da tentação natural de usar metalinguisticamente a persona de Bernardet em um híbrido entre documentário e ficção como este), Fome merece destaque pelas observações precisas que faz sobre nossa relação com os menos favorecidos – e nesse sentido, minha cena favorita é aquela, ficcional, em que um casal oferece a sobra de sua janta e, ao ter sua oferta rejeitada, desembucha todo o lamaçal de ódio e preconceito que moram escondidos sob suas entranhas.

Se essas reflexões tem algum poder transformador ou não, aí é outra história – nem o próprio filme parece acreditar muito nessa possibilidade.

Fome (Idem, Brasil, 2015). Escrito e dirigido por Cristiano Burlan. Com Jean-Claude Bernardet, Ana Carolina Marinho, Henrique Zanoni e Gustavo Canovas.