Texto publicado originalmente no blog Em Cartaz.
A maioria recorda de Mad Max como a produção que catapultou Mel Gibson à fama, embora a maior contribuição da trilogia criada por George Miller seja haver estabelecido a fundação de boa parte das produções pós-apocalípticas subsequentes. Agora, 30 anos após o lançamento de Além da Cúpula do Trovão, George Miller enfim retorna à saga de Max Rockatansky neste parte reboot parte sequência Mad Max – Estrada da Fúria, ovacionado de pé pela público no Festival de Cannes e elogiado por praticamente toda a crítica internacional, a ponto de seus méritos narrativos e técnicos serem nota de rodapé diante da perspectiva de “se” e “como” esta nova aventura poderá influenciar o gênero e a indústria cinematográfica. Certo mesmo é que muito se discutirá sobre os símbolos feministas, anti-capitalistas e anti-fundamentalistas trazidos em uma narrativa que não cessa de impressionar, ainda que construída sobre uma das estruturas mais batidas do cinema: a do road-movie.
Em linhas gerais, o roteiro escrito a seis mãos traz Max (Tom Hardy) como um sujeito atormentado pela lembrança da família que não salvou. Apenas sobrevivendo em um deserto de fogo e sangue, Max é capturado por súditos do tirânico Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) para ser a “bolsa de sangue” do senhor da guerra Nux (Nicholas Hoult). Ao mesmo tempo, a Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), junto com as demais esposas de Joe, planeja fugir à terra prometida fincada no deserto devastado pela bomba termonuclear. A traição desencadeia uma perseguição implacável e exaustiva – no bom sentido -, em que Max desponta como a força necessária para desequilibrar a balança em favor de Furiosa.
Um roteiro igual a este é a desculpa perfeita para uma superprodução irrefreável em seu ímpeto de superar-se a cada novo e surpreendente set-piece – aquelas grandes sequências que deixam o espectador de queixo-caído enquanto perguntam-se “como isto foi produzido?”. Mas se Estrada da Fúria é um tremendo filme de ação, quem sabe o melhor que veremos nesta temporada norte-americana, também é uma obra de arte inquieta diante de tantas possibilidades. Contemporânea, a narrativa apresenta uma multidão de desgraçados, cobertos de feridas, ajoelhados diante de um tirano igualmente decrépito, embora detentor do monopólio de água da região. E se a inclinação instantânea dos ambientalistas é a de gritar “crise hídrica”, George Miller enxerga ainda a brecha para transformar Joe no chefe de um grande cartel de drogas, afinal, é isto que é a água segundo ele.
Não para aí: ao estabelecer Furiosa como a protagonista em vez de Max, George Miller constrói uma heroína com quem podemos nos relacionar e uma narrativa feminista em que a crítica à objetificação e comercialização do corpo da mulher aliam-se a uma mensagem anti-capitalista e anti-fundamentalista. Como é patético – portanto certeiro em seu propósito de ironizar as religiões – o ritual dos Senhores da Guerra, que veneram motores V8 e banham-se em tinta cromada a fim de entrar no paraíso, não sem antes exigirem o “testemunho” de quem esteja próximo e praticarem um gesto suicida que justifica o apelido de “kamikrazys”.
Já através de sua imaginação doentia e perversa, George Miller reacende o temor de um cataclisma nuclear, cujas consequências cobrem de tumores e pústulas o corpo de “seres humanos” que se orgulham de serem tunados com correntes, grampos e implantes subcutâneos e assemelham-se a vampiros de pele albina tamanha sua anemia. Assim, seria injusto se não elogiasse a maquiagem repugnante, quase repulsiva, concebida por Alice Baueris, que ao mesmo tempo em que padroniza os Senhores da Guerra, também os individualiza e não prejudica o reconhecimento de cada um pelo espectador. Aliás, este vampirismo ainda não deixa dúvidas de como o autor põe-se contra a exploração do homem, e faz isto de várias formas, como ao ilustrar a ordenha de leite de mulheres e sugerir a exploração sexual destas ou à forma com que Immortan refere-se a um dos seus como sua propriedade.
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Não bastase tanto frênesi, a trilha sonora de Junkie XL confere insanidade apoteótica à narrativa ao entremear-se com a mixagem de som e reutilizar elementos diegéticos, como roncos de motores, cuspes do lança-chamas e o que parece, à primeira vista, um absurdo conceitual, mas que faz todo sentido no universo diegético pós-apocalíptico. Refiro-me ao carro abre-alas do comboio de Joe, composto por um guitarrista recém saído de um filme de terror logo após ser possuído por Jimi Hendrix e bateiristas enlouquecidos com os ensaios do maestro Fletcher de Whiplash. Por falar em terror, George Miller – em uma boa hora para relemebrar que ele também dirigiu e roteirizou Babe – O Porquinho Atrapalhado e Happy Feet? – reduz a quantidade de quadros por segundo, consequentemente acelerando a ação, e emprega primeiríssimos planos com a câmera subjetiva para maximizar o pavor dos minutos iniciais, que perseguirá o espectador por toda a narrativa sempre que este lembrar das semelhanças da família de Immortan Joe com os seres mutantes de Quadrilha de Sádicos ou mesmo a família de O Massacre da Serra Elétrica.
Por fim, se o competente Tom Hardy não consegue reprisar a loucura que tomava conta de Mel Gibson – não houve ator capaz de ser herói e doido varrido ao mesmo tempo como ele, logo não é demérito não superá-lo -, Charlize Theron adiciona humanidade ao tanque de um filme que roda com nitroglicerina em uma estrada onde não há existe parada para descanso. E assim, mesmo desgastado fisicamente por uma obra implacável e brutal que apenas nos leva de A a B e de volta a A como faz todo road-movie, você pode ter certeza de que assistiu, senão a um novo divisor de águas como foi o original, uma ópera do caos dentro do cinema de ação.