Filme: Os Oito Odiados

O Cinema de Buteco adverte: essa crítica possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.

Os Oito Odiados Samuel L Jackson

QUENTIN TARANTINO. Eu gosto muito dos filmes desse cara e aposto que a maioria de vocês também compartilha desse amor. Afinal de contas, mesmo para quem não acha a obra inteira do cineasta genial, é inegável o talento que ele tem para contar boas histórias ao mesmo tempo em que se esforça para homenagear a sétima arte. Em Os Oito Odiados (The Hateful Eight), Tarantino volta a flertar com o velho oeste e também com o seu primeiro trabalho, Cães de Aluguel, lançado no começo dos anos 1990.

Tarantino costuma fazer auto referências em suas obras e quando menciono Cães de Aluguel não é por acaso. Em seus trabalhos mais recentes, o cineasta aprendeu a dosar um pouco as cenas com longos diálogos com as sequências de ação/violência gráfica explícita de fazer conservadores arrancarem o cu com as unhas. Até existem momentos em que os diálogos funcionam para criarem a tensão desejada (ainda estamos falando de Quentin Tarantino, né?) em Django Livre ou Bastardos Inglórios, mas a verdade é que a maioria dos seus trabalhos recentes deixou essa faceta do cineasta meio de lado. Os Oito Odiados chega para recuperar isso, o que pode acabar incomodando aqueles que não são totalmente familiarizados com o universo de Tarantino e seu estilo. Um diferencial importante é que a cultura pop não pode servir de muletas desta vez, afinal estamos falando de uma trama que se passa no período em que o presidente norte-americano ainda era Abraham Lincoln, mas não se engane: os palavrões e as ofensas estão bem representadas.

Para quem não sabe do que se trata, a produção narra as desventuras de um grupo de oito homens obrigado a fazer uma parada numa cabana no meio de uma nevasca. Nenhum deles é flor que se cheire, especialmente John Ruth (Kurt Russell) e Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), dois caçadores de recompensas que se unem para não correrem riscos com os outros seis indivíduos. Ou seja, assim como acontece em boa parte de Cães de Aluguel, a ação se desenvolve em apenas um único ambiente. Podemos citar também a obra-prima obrigatória 12 Homens e Uma Sentença, que também acontece no mesmo lugar e funciona especialmente pela parceria de um roteiro genial e uma direção ainda melhor.

Nessas circunstâncias, nada mais apropriado que ter muitas cenas que começam com uma conversa amigável e se encerram com alguém levando um tiro. E isso acontece muito em Os Oito Odiados. Os personagens praticamente despejam pólvora pela boca e parecem todos à beira de explodirem a cabeça um do outro. Tarantino não conseguiu criar momentos mais tensos que a lendária cena em que Denis Hopper é ameaçado dentro de seu lar em Amor à Queima Roupa, de Tony Scott, ou a presença irônica e assustadora de Christoph Waltz descobrindo que uma família abriga judeus escondidos em Bastardos Inglórios, mas nos faz inclinar o corpo para frente e apertar bem a poltrona no momento em que Warren confronta o general Sandy Smithers (Bruce Dern) revelando como foi que matou o filho dele. E são por momentos assim, que se repetem em outras partes do filme, que Os Oito Odiados se garante, já que a trama é bem simples e mesmo a tradicional “vingança” (elemento básico da filmografia do cineasta) é quase que deixada totalmente de lado.

Outro mérito da produção está na participação do elenco, especialmente Jennifer Jason Leigh na pele da maluca Daisy Domergue. Mostrando uma interpretação mais física do que verbal, a atriz conquista o espectador rapidamente por ser uma autêntica personagem do universo de Quentin Tarantino: vale a pena observar suas expressões sempre que Kurt Russell está dizendo alguma coisa ou batendo nela. Samuel L. Jackson também merece um comentário. Estamos tão acostumados a vê-lo sempre como o coadjuvante que nem pensamos no quanto é injusto que ele não apareça como o personagem principal de alguma obra de qualidade, como é o caso aqui. Já a dupla Tim Roth e Michael Madsen, que atuaram juntos em Cães de Aluguel, se destacam pelas sutilezas, embora o primeiro tenha me feito sentir saudades de Christoph Waltz na maioria das vezes em que aparece em cena.

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Em Django Livre, Tarantino enfrentou a fúria de Spike Lee por um suposto racismo e estímulo ao ódio. Tudo isso pela quantidade de vezes em que a palavra crioulo é mencionada (inclusive, para quem tiver a coragem de assistir a versão dublada: eles usam essa ofensa ou modificam por algo mais “leve”? Em Django Livre não existe nenhum “crioulo” em português). Em Os Oito Odiados existem vários momentos em que os branquelos ofendem o Major Warren, mas o que chama mais a atenção é a maneira agressiva como Ruth trata sua prisioneira. Daisy é um verdadeiro saco de pancadas e Tarantino é sádico ao nos fazer rir da maioria das cenas em que a bandida recebe algum tipo de “carinho”. E é exatamente isso que o diretor gosta de fazer nos seus trabalhos. Ele cria situações tão exageradas e absurdas que só nos resta rir. Funciona mais como uma grande crítica do que como apologia, como o intelecto superior de Spike Lee tenta empurrar em suas entrevistas.

Os Oito Odiados irá ocupar quase três horas da sua vida e os fãs de Quentin Tarantino certamente ficarão maravilhados por mais essa bela contribuição do cineasta para os cinéfilos. Infelizmente, ao contrário de seus trabalhos mais populares, o excesso de diálogos pode significar uma experiência arrastada daquelas que ninguém gosta nem de pensar depois que sai do cinema. É preciso conhecer o trabalho de Tarantino e querer participar dessa angustiante jornada em que qualquer coisa pode acontecer e ninguém é exatamente aquilo que diz. Quem conseguir ficar até o fim terá uma bela recompensa.