Que Horas Ela Volta Destaque

Filme: Que Horas Ela Volta?

“A tua piscina está cheia de ratos,
tuas ideias não correspondem aos fatos.
O tempo não para.”
Cazuza

Que Horas ela Volta - Filme
Vi o cartaz na vitrine do cinema e fiquei hipnotizada. Pensei que gostaria de levá-lo para casa e todos os dias pensar sobre ele. A foto é da atriz Regina Casé, que é branca, é negra, e é índia, vestida de empregada doméstica, fazendo cafuné em um menino. Tem tanto ali! Também pensei que tem filme novo do Woody Allen em cartaz, e aquele O Pequeno Príncipe, e um filme argentino do mesmo diretor de Medianeras que uma amiga queria ver comigo, mas, na verdade, eu já sabia que não havia concorrência: o filme Que Horas Ela Volta? era o escolhido da noite. Ainda hipnotizada, busquei os créditos: direção de Anna Muylaert. Para começar, uma mulher diretora. Sorri. E para seguir sorrindo: é a mesma diretora dos longas Durval Discos e É proibido fumar. Se antes eu não tinha dúvidas do filme que eu iria ver, agora já começava a criar borboletas no estômago. E adianto: o filme deu conta de todas elas, as borboletas.

Que Horas Ela Volta? conta a história de Val, nordestina, que trabalha e mora na casa dos patrões ricos em São Paulo. Ela vê seu mundo virar de cabeça para baixo quando sua filha Jéssica resolve vir de Pernambuco para morar com ela e prestar vestibular na USP. Depois de mais de dez anos praticamente sem contato, conhecê-la e “educá-la” se tornam uma tarefa muito mais difícil que cuidar da casa dos patrões. Criar um filho é a tarefa mais difícil do mundo! Val não se conforma como a filha se acha no direito de comer o mesmo sorvete que o filho do patrão, sentar na mesma mesa, usar a mesma piscina… Parece uma ideia sem cabimento. No entanto, apesar do ensino fraco em sua escola, Jéssica teve um professor de história que lhe ensinou muito bem: ela não é pior do que ninguém. (Não à toa, um professor de história). Lembrei muito do filme Casa Grande, dirigido pelo Filipe Barbosa e que vi na Mostra Internacional de Cinema no ano passado, o qual essa relação patrão-empregado também é norteadora e o filho dos patrões tem suas referências afetivas com aqueles que o servem. Em Que Horas Ela Volta?, o filho dos patrões é Fabinho, um adolescente de dezessete anos, que, desde os quatro, tem Val como sua figura materna. Ele e Val mantêm uma relação de carinho e cumplicidade. A foto do pôster vem de uma cena em que ele recebe cafuné enquanto conversam. Em outra cena, ele corre para seu quartinho para dormir abraçado com ela. Essa terceirização da maternidade é muito bem trabalhada no filme e reflete o que acontece com muitas famílias brasileiras: a mãe que contrata uma babá para cuidar do filho, enquanto a babá deixa seus próprios filhos com parentes. Em uma cena em que sua mãe Bárbara tenta consolar Fabinho, ele a nega. Seria um carinho falso, de fachada.

O filme retrata muito fluidamente essa classe A paulista e quadrada tão inconformada com os pobres e nordestinos entrando na mesma universidade que seus filhos, viajando de avião. Se antes, eles vinham para São Paulo de ônibus para servir e obedecer, trabalhando de motorista e empregada; hoje, educados, vêm e fazem o que bem querem. É a era pós-Lula, na qual o pobre já aprendeu que tem o mesmo direito do rico de ser visível. “Sim”, diz Jéssica recém-chegada a São Paulo, “Vou prestar vestibular. Quero fazer arquitetura na FAU”. A reação da patroa, Dona Bárbara, é o comentário: “É, esse país está mesmo mudado”.

Que Horas ela Volta - Regina Casé

Não é aleatório que Jéssica queira entrar no curso de arquitetura, uma carreira historicamente conhecida por sua tradição elitista. Em uma cena, com a planta aberta da casa dos patrões sobre a mesa da cozinha, Jéssica mostra à mãe a proporção do casarão com o seu quartinho. A casa grande e a senzala. O quarto de hóspedes, sem hóspedes, tem um tamanho ao menos duas vezes maior que o espaço reservado para a empregada dormir e guardar suas coisas (isto é, objetos que os patrões não querem mais). Em outro momento, quando Val e Jéssica passam de ônibus pelo Largo da Batata em São Paulo, a mãe comenta que ali, o reduto dos nordestinos em São Paulo, onde antes aconteciam várias feiras e festas de forró, agora foi todo cimentado. Um projeto que ela diz não entender: não é uma rua, não é calçada, não é uma praça, porque não tem árvore, “não tem nem um pé de mato”, não é mais nada, é só um espaço cinza. Uma crítica que parece sutil entre as risadas dos espectadores, mas que toca em um ponto fundamental dessa política urbana do apagamento das diferenças.

Esse apagamento na arquitetura da cidade parece transformar tudo em uma coisa que não é uma coisa, nem outra. Parece bom, um espaço parcial, para unir todo mundo que corre por ali. Porém, desde quando borrar os traços da cultura brasileira de um lugar e transformá-lo em território neutro é sinal de respeito por ela? Ninguém mais se identifica com aquele espaço, porque qualquer sinal da cultura, do popular, do nordestino, do povo que ali vive e trabalha, desapareceu. Sem dar sermão em nenhuma fala do filme, vários problemas como este são levantados, inclusive nos silêncios, olhares e gestos das personagens.

E o filme de Anna Muylaert vai além das relações e dos problemas sociais comentados até aqui. Outra característica importante é o protagonismo feminino, que ultrapassa qualquer diferença de classe. São as mulheres que tomam as decisões na história, enquanto que os homens não têm a menor ideia do que fazer da vida. José Carlos, o patrão, é tratado como filho pela esposa, enquanto o filho deles é tratado como filho da empregada. Quando José Carlos, na cozinha, pergunta se Jéssica não quer se casar com ele, o susto – e o riso – da filha da empregada, e dos espectadores, é instantâneo. Não pela idade, não pelo poder aquisitivo. Mas sim porque, afinal, ele não é casado? Enquanto a esposa trabalha fora, ele passa o dia em casa, e diz: “Todos dançam, mas sou eu quem toca a música”, poucos minutos depois de também confessar que, na verdade, nem ele toca música nenhuma, é tudo herança de seu pai rico que ficou pra ele. Ou seja, Zé Carlos reproduz o mesmo discurso do pai, porque não tem nada original a dizer; e reproduz o mesmo comercial de margarina, porque é mais conveniente manter as tradições, ainda que falidas. Assim, ninguém precisa pensar, já que tudo foi sempre igual, é só copiar. Tanto o papel do opressor, quanto do oprimido. Responde Val à sua filha quando esta pergunta quem lhe ensinou seu papel de inferior: “Ninguém precisou me ensinar. Tem coisas que a gente já nasce sabendo”. É… Val não é a única que nunca parou para refletir sobre isso.

Em um país separatista que vê o silenciado começar a levantar a voz e a ganhar o poder de cidadão pela primeira vez na história, o olhar também se levanta, ultrapassa os muros e enxerga um mundo, muito maior do que a preocupação de o que fazer com a velha bandeja de prata da patroa. Durante a última cena do filme, um café aparentemente banal entre mãe e filha, finalmente em sua própria casa, a xícara branca e xícara preta estão na mesma bandeja de plástico. E a revolução não vai parar de acontecer.

Vi todos os créditos finais aos prantos. Quer dizer, não vi. As letrinhas brancas na tela preta estavam turvas e tortas, embora ache que só eu as tenha visto assim, no meio da choradeira. Duas moças me pediram licença para passar por mim entre as poltronas, levantei o rosto e uma delas disse: “É bom, né?” Depois já na porta, nos olhamos mais uma vez e sorrimos. Sequei as lágrimas, saí da sala, caminhei até a Paulista, e na avenida vi passar uma limusine com luzes de neon piscantes e três adolescentes usando cachecóis de plumas no teto solar do carrão. “And now, the end is near… So I face the final curtain”… Enquanto isso, na calçada, dois mendigos pararam para ouvir um falso Elvis Presley cantar “My Way”. É… A revolução não vai mesmo parar de acontecer.