Garotos de Programa

O diretor Gus Van Sant recorre em suas obras a sensibilidade como forma de explorar as essências da humanidade. Seus filmes costumam ser representações da juventude em ebulição sexual – através de seus personagens, há a urgência em demonstrar os vícios e os prazeres dessa fase juvenil que permanece ora indagadora, ora transviada. Polêmico, concreto e disposto a quebrar sempre tabus, Van Sant promove seu olhar ao âmbito da homossexualidade (por ser gay assumido, provavelmente sinta a necessidade de expor suas próprias vivências e percepções). Garotos de Programa é o discurso contundente sobre este fato da sexualidade experimental.

É um filme intenso, retrato poético homoerótico sobre jovens em crises existenciais e anseios sexualizados de uma vida pautada na marginalidade. O filme exerce sua visão sobre o mundo da prostituição masculina. Mike Waters (River Phoenix) é um michê homossexual sem casa, repleto de traumas de uma vida sem o amparo familiar. Perambula pelas ruas em busca de fregueses, é sufocado pela carência de uma mãe que o abandonou quando ainda era criança. Ele tem uma doença incomum, é portador da narcolepsia, que provoca ataques de sono profundo quando tem emoções muito fortes. Enquanto vive na vida predestinada à prostituição, Mike sofre pelas constantes memórias da infância que o lançam a uma busca incansável por sua desconhecida mãe. É nesta jornada que seu destino confronta-se com o de Scott Favor (Keanu Reeves), o rico filho do prefeito de Portland que fugiu de casa para descobrir o sentido da vida nas ruas, também se prostituindo.

Qual a relação que o destino providenciou pra esses dois jovens? O que parece ser o anúncio de uma forte relação de amizade, torna-se o desejo aflorado quando Mike passa a ter tesão incondicional pelo parceiro – como driblar os freios de um desejo crescente? Há sentido correspondente na união desses dois? Van Sant concebe um trabalho intenso, a provocação sexual torna-se uma reflexão diante de dois personagens tão profundos.

A homoafetividade permeia em todo o cerne do roteiro alucinógeno e provocativo, visto que a sexualidade é desnudada ao longo dos personagens personificados. Mike e Scott utilizam da beleza como arma de sedução, são jovens que buscam o sexo para a realização do sustento – obviamente, enxergam na prostituição a única forma de se viver, visto que não procuram outras formas de trabalho. Tanto eles, bem como os companheiros que fazem parte da estrutura do círculo de convivência, não se preocupam em ter metas. Não há perspectivas aparentes, a não ser o condicionamento de uma vida mais transgressora e voltada ao favorecimento da prostituição. O lado obscuro deste mundo é muito bem delineado pelo roteiro que cumpre em também desmitificar os rótulos dos prostitutos.

Mike rende-se à prostituição, apenas para ganhar míseros trocados e, assim, conseguir sobreviver – porém, não há nenhuma satisfação pessoal nesse sentido. Ele demonstra ter repúdio pelos fregueses, ainda que consiga mascarar com seu apelo sexual um aparente prazer nessa relação. A relação é apenas da troca do sexo pelo dinheiro, sem nenhum elo afetivo. Contudo, ao interessar-se por Scott, há nele um conflito interior – seria capaz de abandonar os programas em função de um sentimento? Já Scott nega a atração, demonstra-se reservado ao interesse do outro, afirma que apenas presta favores sexuais a homens que o favoreça materialmente.

O sexo pode conduzir a personalidade? Ou o que move é o desejo do amor inesperado? Como viver imerso numa vida predestinada à falta de perspectiva? O sonho está acima de princípios próprios? Decerto, o sexo determina posturas e hábitos de muitas pessoas – e há pessoas que são direcionadas pelos próprios instintos da libertinagem. E há aqueles que realizam-se lucrando através do sexo.

Gus Van Sant explora bem a faceta psicológica de dois personagens, másculos, porém indefesos e confusos, diante da expressão da própria sexualidade. A representação dos prostitutos é expressa com vigor, a caracterização de suas personalidades e gestos são próprios dos redutos a que se estão inseridos. Numa espécie de documentário, o filme pauta o mundo volátil de viciados, ladrões e mendigos que atravessam a realidade – e mantém relação de intimidade também – de Mike e Scott. É seca, aguda e cruel a maneira como Van Sant expõe seu cuidadoso olhar pelo lado underground ao colocar garotos reais, verbalizando suas histórias e vivências sexuais.

A belíssima fotografia impressiona pela exposição de tons, cores e planos bastante modernos – as cenas de sexo são apresentadas de maneira criativa, instigante, ao colocar os personagens como se paralisados em cada ato. Congelam-se as cenas de sexo, recria-se um estilo. A composição do saudoso River Phoenix impressiona pela sua dimensão interpretativa, numa concentração e doação total ao personagem – provoca, sexualiza. Sua química com Keanu Reeves é expressa com diálogos ora melancólicos, ora sensuais.

Nada mais instigante, prazeroso e reflexivo que a construção existencial de dois prostitutos – em meio ao caos de mundo, indagadores da vida e desbravadores de sexos da humanidade. Quebram-se rótulos sobre as esferas da marginalidade, homossexualidade e também prostituição. É o senso do cinema cultural queer, abordado por um diretor que preza pela consciência de mundo. Indiscutível pequena obra-prima. “Acho que posso amar mesmo que não me paguem, porque você não me pagou, mas eu te amo”.