#ButecoInRio 2016 – 04 e 05: Hooligan Sparrow, Entre os Homens de Bem, E Donald Chorou, A Luz Entre Oceanos e A Longa Noite de Francisco Sanctis

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EM NOME DE UMA BOA COBERTURA, alguns percalços podem ser enfrentados. Não, aqui não começa a crônica de um acaso que comprometeu este representante do Cinema de Buteco durante um dia do Festival do Rio, apenas a lembrança de que estes problemas ocorrem, mas felizmente ainda não nos afetaram. Que assim continue.

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  1. Hooligan Sparrow ★★★★

(idem, China, Estados Unidos, 2016)

“Quando você é reprimido e não tem defesa, a única coisa que você pode fazer é documentar as atrocidades.”

Huang, um jovem chinês sem qualquer – mesmo – experiência ou conhecimento em termos de realização cinematográfica, documental ou jornalística e presumivelmente sem formação superior ou elevado grau de intelectualidade, foi o responsável por esta emblemática frase que é definitiva não apenas de Hooligan Sparrow, como da relevância e comprometimento social de que o documentário enquanto gênero artístico dota, de maneira geral.

A jovem Nanfu Wang não precisou mais do que a velha máxima “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – e longe de mim reforçar qualquer discurso pseudo-meritocrático com isso – para construir uma produção digna de grande admiração. Engajando-se sem grandes – ou pequenos, diga-se – recursos financeiros na retratação e apoio à luta da personagem-título, uma mãe solteira que decidiu prostituir-se gratuitamente para revelar aos quatro cantos a realidade deplorável de um trabalhador sexual, suscitando debates também sobre a exploração sexual de mulheres e crianças na China, Wang pratica justamente aquilo que classifica como praticado por sua retratada: ativismo de confrontamento. Partindo da aproximação com a superfície da questão – Sparrow, cujo engajamento já havia alcançado certa notoriedade e direcionado algumas lentes para a questão -, a jovem decide de maneira absolutamente inteligente não parar neste ponto: suas intenções são de alcançar as entranhas, reabrir a discussão sobre, por exemplo, o caso das garotas estupradas pelo diretor de sua escola, denunciar a perseguição às ativistas contrárias à exploração sexual, e evidenciar não apenas a omissão, porém também o envolvimento, das autoridades públicas chinesas com abusos femininos.

Em “Cabra Marcado Para Morrer”, um dos melhores documentários da história do cinema, há uma sequência na qual o mestre Eduardo Coutinho expõe a justificativa forjada pelas autoridades da ditadura militar para apreensão dos equipamentos cinematográficos do diretor: a classificação das câmeras como aparato bélico, armas. Hooligan Sparrow é um daqueles documentários que nos fazem recordar a significação da câmera, sim, como uma arma – em sua lente, mesmo a abrigada pelos óculos de Wang, está carregada a pólvora necessária da exposição, da denúncia, do confronto.

Nota: esta exibição foi apresentada pelo produtor do filme, singela e muito honestamente, numa sessão quase esquecida do discretamente brilhante Cine Joia, local que neste dia carregava uma aura capaz de nos fazer perdoar qualquer atraso entre os horários marcados. Um cinema que funcionou entre 1969 e 2005, foi reaberto e desde 2011 é uma trincheira da luta pela resistência física da memória, da manutenção das tradicionais salas de cinema.

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  1. Entre os Homens de Bem ★★★★

(idem, Brasil, 2016)

Houve uma certa dificuldade em “virar a chave” e entender a mudança de abordagem deste documentário em relação ao anteriormente comentado – acredite, em festivais com muitas sessões seguidas, esta pode se tornar uma tarefa consideravelmente trabalhosa. Em Entre os Homens de Bem, não existe precedente para uma denúncia, para confronto, enfim, trata-se de uma proposta completamente distinta – e, dentro de sua estrutura, igualmente funcional.

Iniciando sua trajetória com uma sequência que mostra Jean Wyllys, o objeto da narrativa, numa sessão espiritual de umbanda – corrijam-me se eu estiver equivocado -, o longa-metragem de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros deixava ali evidente parcela destacada de suas intenções: a humanização daquela figura; uma ideia importante sobretudo num contexto de polarização política fervente, na qual este passa a ser intensamente encarado, em concepção geral, como uma mera máquina reduzida à defesa de seu lado – na mais estereotipada definição deste último termo. Há, neste sentido, sequências de uma sensibilidade digna de reconhecimento, entre as quais é sobressalente aquela na qual o deputado federal entoa “O que será”, do espetacular Chico Buarque, revelando uma mescla de admiração pelo que canta e contida tristeza pela compreensão do que aquela letra representa. Por momentos isolados, esta intencionalidade acaba por prejudicar a produção – a primeira cena no apartamento do retratado soa artificial -, embora não sejam capazes de ofuscar uma obra ainda mais digna de elogios por atribuir humanidade, também, à forma como Wyllys encara a luta pelos direitos LGBT, tomando-a para si em decorrência do sufocamento de um fundamentalismo religioso crescente que, praticamente sozinho, enfrenta quanto à luta que decidiu por travar – há um enquadramento no congresso, sombreando o político, de uma beleza notável no sentido de simbolizar sua solidão na causa.

Sob um viés mais político, são funcionais as ocasiões em que a narrativa propõe visualmente um diálogo entre a atualidade dos discursos de “ódio mascarado” despejados no congresso contra Jean Wyllys e os depoimentos contrários ao mesmo durante sua longínqua participação no Big Brother Brasil – ambas possuem o mesmo caráter e nível de autenticidade, distinguidas apenas pela seriedade com que são encaradas. Assusta-me, portanto, parar para imaginar que se esta sessão tivesse ocorrido em São Paulo, provavelmente os depoimentos de Jair Bolsonaro e Marco Feliciano seriam ovacionados, enquanto o protagonismo de um representante público homossexual, ligado às religiões afro e que defende passionalmente o grupo que majoritariamente representa no congresso nacional seria vaiado e ofendido. Por sorte, esta ainda é só uma hipótese.

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  1. E Donald Chorou ★★

(Donald Cried, Estados Unidos, 2016)

Quem nunca conviveu com aquele vidente da fileira de trás? Todo cinéfilo que se preze já assistiu a um filme no cinema próximo da inconveniente companhia do espectador que, ansioso pelas revelações da produção que ocupa seu campo de visão, não consegue evitar berrar seus palpites sobre quais serão elas. Eis, então, o problema: e quando ele acerta?

Por trás da maquiagem dos cenários gelados, do suposto choque da nostalgia e da percepção da passagem do tempo e da forjada atmosfera indie, esconde-se um roteiro absolutamente doutrinado por fórmulas e clichês. Desde o primeiro ato, E Donald Chorou negligencia a possibilidade de aprofundar as frustrações de Peter (Jesse Wakerman) e Donald (Kris Avedisian, também diretor e roteirista) e como o atrito entre os dois as revela, preferindo adotar a abordagem mais pasteurizada possível do caráter desta relação, no batido esquema “homem de meia idade sério e maduro” (Peter) x “bobalhão que ficou preso na adolescência” (Donald), muito melhor explorado, por exemplo, em “Antes Só do que Mal-Acompanhado” ou mesmo “Um Parto de Viagem”; há maior facilidade, obviamente, em extrair humor da extensão das ações e monólogos constrangedores de Donald – uma espécie de David Brent – e das reações enfaticamente irritadas de seu velho amigo diante destas.

Condenado por sua própria escolha, E Donald Chorou explora a sequência deste contato inicial com uma sequência de eventos que podemos prever – o sujeito sentado atrás de mim, de fato, o fez – com facilidade: o incômodo inicial, o acesso de afetividade, o novo episódio de conflito, uma decepção grande incompreensivelmente perdoada e, bem, assim por diante. Pena, destarte, que façam parte desta mesma obra estes problemas e uma sequência sensível e honesta como aquela que encerra a trama, na qual finalmente nos vemos em contato com a raiz da substância emocional carregada entre aqueles dois amigos, embora empalidecida pelo tempo – com mais disso, talvez não fosse tarde demais.

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12. A Luz Entre Oceanos ★★★

(The Light Between Oceans, EUA, Nova Zelândia, 2015)

Derek Cianfrance é um cineasta que, ainda jovem e evidentemente talentoso, tornou-se merecedor de ser acompanhado pelo que fez em seus dois recentes longas – “Namorados Para Sempre” e “O Lugar Onde Tudo Termina” -; havia algo diferente ali, digno de observação. Uma pena, portanto, que sua direção soe completamente despersonalizada neste A Luz Entre Oceanos, título que, do ponto de vista narrativo, grita pelo reconhecimento das premiações – e por mais triste que seja o fato de isso ter se tornado um modo de definição de uma obra, devo aqui utilizá-lo. Não que seu trabalho seja incompetente – a prenuncia de uma tragédia que substituirá a calmaria, através da progressiva troca da fotografia quente pela paleta acinzentada, por exemplo, revela qualidade -, todavia, a tentativa insistente de configuração de um clima bíblico que cerca o drama narrado – há um frame que coloca a imagem do casal praticamente centralizada no céu -, a utilização de uma trilha sonora acintosamente maniqueísta – o talentoso Alexandre Desplat nunca esteve tão burocrático e melodramático – e a filmagem contemplativa do romance dos protagonistas, em especial de Alicia Vikander – sinto que Cianfrance, em algum momento da produção, se apaixonou pela atriz, o que é bem compreensível -, aproximando-se perigosamente de uma propaganda de perfume, sabotam as intenções de um diretor que, diga-se, tinha uma história de potencial absurdo em mãos.

O desenvolvimento do drama, por si, abrange questões importantes – a maternidade é biológica ou a afetiva? – e possui um caráter louvavelmente humano – a reflexão sobre a clemência e o perdão, a verdade e a culpa que martirizam em nome da felicidade -, bem como visualmente construído por uma produção visivelmente detalhada – a reconstrução da época é eficaz, a fotografia é agradável aos olhos e a sonoplastia é poderosíssima na sequência que vou nomear “primeira tragédia”.

O principal mérito de A Luz Entre Oceanos, no entanto, atende pelas interpretações de Michael Fassbender, Alicia Vikander e Rachel Weisz, sem as quais o filme seria um poço vazio. Enquanto o primeiro visivelmente aponta a frieza e o anseio de solidão como consequentes de um passado sombrio e da incapacidade de conviver com os próprios atos, Vikander passa por uma transformação emocional intensa no decorrer da trama, exibindo uma envolvente inocência inicial que será voraz e visivelmente substituída pelo acúmulo de angústias que marcarão sua vida, enquanto Weisz constrói uma personagem intencionalmente entorpecida pela dor que acumula. Não podemos nos permitir esquecer, destarte: neste ponto, Derek Cianfrance também possui méritos.

No quinto dia:

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13) A Longa Noite de Francisco Sanctis

(La Larga Noche de Francisco Sanctis, Argentina, 2016)

Sempre haverá quem caia em interpretações farsescas na qualidade de argumentos qualitativos de uma narrativa audiovisual – e, na esfera da cinefilia, são muitos os picaretas que sustentam sua “intelectualidade” nisto. A Longa Noite de Francisco Sanctis não carrega no vazio, no caminhar indefinido do percurso de seu protagonista, alguém que vai da monotonia ao lugar nenhum, o espelho de alguém que nunca superou uma ferida de seu passado, ou de um sujeito condenado à progressão cíclica e esvaziada de sua existência, alguém cujas pretensões de outrora foram substituídas pelo conformismo – afinal, todas essas são apenas hipóteses levantadas em decorrência de um trabalho narrativo lamentavelmente incapaz de desenvolver um contexto, uma substância que nos permita assimilar a realidade de Francisco Sanctis, ao menos especular suas cicatrizes ou indecisões, que seriam supostamente transmitidas pelas decisões do roteiro; sem isso, resta apenas o vazio e tedioso. Não, não o “vazio significativo”: apenas o vazio.

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Até amanhã.