dogma review

Review Dogma: Kevin Smith transforma Ben Affleck e Matt Damon em anjos exterminadores

Kevin Smith nunca foi exatamente sinônimo de sutileza. Mas em “Dogma”, ele surpreende ao entregar um roteiro que bate na porta da blasfêmia com um sorriso no rosto — e um crucifixo no bolso. Lançado em 1999, o filme é uma mistura de teologia, besteirol e filosofia de boteco, com diálogos que soam como se Tomás de Aquino tivesse fumado um baseado com os roteiristas de “South Park”.

“Dogma” não é o filme mais engraçado de Smith — esse título ainda pode pertencer a “Clerks” ou “Mallrats” — mas é, sem sombra de dúvida, o mais bem escrito. E isso não é pouca coisa. Concebido antes mesmo do debut indie do diretor com “Clerks”, o roteiro de “Dogma” parece ter sido fermentado em dúvidas existenciais, confissões de catequese e muita indignação com o cardápio do Vaticano. O resultado é um filme que não apenas sobrevive ao tempo, como se sente mais atual hoje do que quando foi lançado.

No centro da trama, dois anjos caídos — Loki (Matt Damon) e Bartleby (Ben Affleck) — encontram uma brecha teológica para voltar ao Céu. O problema? Se eles conseguirem, vão provar que Deus é falível e destruir toda a existência. Clássico dilema de burocracia divina. Entra em cena Bethany (Linda Fiorentino), funcionária de uma clínica de aborto e última descendente de Jesus, encarregada por ninguém menos que o anjo Metatron (Alan Rickman, delicioso em sua secura britânica) de impedir o apocalipse teológico. Acompanhada por Jay e Silent Bob (os mascotes da View Askewniverse), ela embarca numa jornada que mistura crítica religiosa com flatulência angelical.

E é aí que o filme brilha: Smith trata a fé como algo real dentro daquele universo. Não há ironia no tratamento das crenças. Os personagens acreditam — e o filme exige que a gente entre na onda também. Assim, ele pode criticar o machismo bíblico, o racismo teológico e a hipocrisia da Igreja Católica sem cair no niilismo cínico que tantos outros filmes escorregam. Como disse Rufus (Chris Rock), o 13º apóstolo que foi apagado da história por ser negro: “As pessoas deviam ter ideias, não crenças. Pessoas morrem por crenças.”

Dogma é engraçado, sim. Mas é uma comédia existencial, uma heresia com coração. Kevin Smith faz piada com Deus (Alanis Morissette, num dos castings mais deliciosamente aleatórios da história), com o anjo bêbado que virou stripper (Salma Hayek como Serendipity) e até com o próprio Cristo, transformado em “Buddy Christ”, um Jesus marqueteiro que pisca e faz joinha. Ainda assim, o que fica não são os palavrões ou o monstro de cocô (sim, isso também tem). É a honestidade.

Bethany é uma das protagonistas femininas mais interessantes da filmografia de Smith. Linda Fiorentino entrega uma mulher em crise, cheia de ressentimentos com Deus, com o corpo e com o passado. Uma heroína que não está nem um pouco animada com a missão, e justamente por isso é tão humana. Ela não quer salvar o mundo — ela quer engravidar, viver, fazer sentido da dor. E a jornada dela é mais poderosa do que qualquer batalha angelical com espadas flamejantes.

Claro, nada disso seria possível sem o elenco. Affleck e Damon, ainda surfando na onda de “Gênio Indomável”, mostram química afiada como os anjos em crise existencial. Alan Rickman rouba todas as cenas. Jason Lee como Azrael é a cereja do caos. E Jay (Jason Mewes), como sempre, é o idiota necessário — aquele que grita “Snootchie Bootchies” enquanto o mundo desmorona.

Mas talvez o maior pecado de “Dogma” seja o fato de ele estar, hoje, praticamente perdido no limbo digital. Por conta da treta dos direitos com os Weinsteins, o filme não está em nenhum streaming. É cult underground por obrigação legal. O que é uma pena, porque se ele estreasse hoje na Netflix, teria tudo para viralizar — entre ex-católicos, teólogos sarcásticos e fãs de Alanis Morissette.

“Dogma” é sobre fé, mas também sobre dúvida. Sobre permanecer numa religião mesmo quando ela te decepciona. Sobre rir com e não apenas da religião. É um filme que diz: você pode questionar a fé e ainda assim acreditar. E talvez, só talvez, esse seja o maior ato de fé de todos.

No fim das contas, Smith nos oferece um milagre cinematográfico: um filme onde Jay e Silent Bob salvam o universo — e a gente acredita. Aleluia.