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Review Foi Apenas um Acidente: A vingança servida fria no deserto iraniano

poster foi apenas um acidenteJafar Panahi não está para brincadeira. Depois de anos desafiando a censura do regime iraniano como quem cospe no prato que não comeu, o diretor entrega “Foi Apenas um Acidente” – e o título é a maior mentira desde “Velozes e Furiosos” prometer ser sobre corrida de carro.

Aqui, nada é acidental. Cada frame é calculado como ataque cardíaco em jantar de família.

Perna de Pau e o acerto de contas

A premissa já te pega pelo colarinho: Vahid (Vahid Mobasseri) reconhece pelo som da perna mecânica o torturador que o destroçou na prisão. E não é reconhecimento do tipo “oi, colega do Ensino Médio no supermercado”. É o tipo de reconhecimento que faz seu estômago virar e sua mão tremer.

Panahi, que conhece prisão por dentro (passou dois meses apanhando de agentes em 2010), não está fazendo exercício de estilo. Está sangrando na tela.

O filme vira “Vingadores da Vida Real” versão iraniana quando Vahid reúne outros ex-prisioneiros para confirmar se pegou o cara certo. Só que em vez de superpoderes, eles têm trauma. Em vez de tecnologia da Stark Industries, têm uma van velha e dúvidas existenciais.

Comédia no inferno

E aqui mora o gênio diabólico de Panahi: “Foi Apenas um Acidente” é engraçado pra caramba.

Imagina “Pequena Miss Sunshine” se a família estivesse sequestrando o torturador no porta-malas. Tem noiva de vestido branco, fotógrafa nervosa, cara estressado e um parto acontecendo no meio do caos. É Tarantino encontra Kiarostami num boteco de Teerã.

A edição de Amir Etminan faz mágica: panorâmicas que transformam tensão em piada e piada em soco no estômago. Uma hora você ri, na outra está segurando a respiração.

Prisões dentro de prisões dentro de prisões

Panahi constrói camadas de confinamento que fariam Hitchcock babar. A caixa de ferramentas onde escondem o suposto torturador? Claustrofóbica como “Rope”. A van? Panela de pressão emocional. O deserto? Infinito e sufocante ao mesmo tempo – tipo sua última reunião de família.

E tem aquela cena no deserto – plano-sequência de tirar o fôlego onde Hamid solta o verbo. A câmera gira entre os personagens enquanto ele detona todo mundo: os omissos, os esquecidos, os covardes. É teatro grego com iPhone.

Torturar o torturador resolve alguma coisa?

Essa é a pergunta que Panahi enfia goela abaixo sem lubrificante: se você usar as armas do opressor, você vira ele?

Os ex-prisioneiros foram todos vendados durante a tortura. Então reconhecem “Perna de Pau” por som, cheiro, toque. É sensorial, visceral, instintivo – como trauma sempre é. Lógica não entra nessa equação. Só dor e a fome de vingança.

Mas será que é vingança ou justiça? Será que existe diferença quando o Estado te falha?

Elenco que sangra verdade

Cada ator entrega performance crua como carne no açougue. Mobasseri especialmente – o cara carrega nas costas o peso de quem nunca vai dormir direito de novo. Mariam Afshari como Shiva, a fotógrafa, tem olhos que contam histórias que o roteiro nem precisa explicar.

E Panahi, esperto, escala até o próprio sobrinho (Madj Panahi) no elenco. Tudo vira meta, tudo vira espelho.

Cinema é arma, cinema é cura

Panahi foi proibido de fazer filmes. Continua fazendo. “Foi Apenas um Acidente” é ato de rebeldia disfarçado de thriller. É terapia disfarçada de vingança. É arte disfarçada de manifesto.

O filme ganhou a Palme d’Or em Cannes 2025 não por pena – ganhou porque é cinema urgente, necessário, visceral. É o tipo de filme que gruda na sua pele e não sai no banho.

Cinematografia de Amin Jafari captura o deserto iraniano como personagem: belo e ameaçador, testemunha muda de horrores que a História prefere esquecer.

Veredicto final

“Foi Apenas um Acidente” é mentira já no título. Não foi acidente. Foi construído frame a frame para doer, para questionar, para não te deixar confortável.

Panahi entrega thriller psicológico que é também comédia negra, drama familiar, manifesto político e sessão de terapia coletiva. Tudo ao mesmo tempo. É cinema expandido até o limite – e além.

Se você acha que filme iraniano é sinônimo de “lento e chato”, prepare-se para ter seu preconceito atropelado na estrada de terra. Assim como aquele cachorro no começo do filme, suas expectativas vão virar rastro no asfalto.

E não foi acidente nenhum.


⭐⭐⭐⭐⭐ (5/5)

Onde assistir: Nos cinemas

Vale a pena? Se você tem estômago para cinema que incomoda do jeito certo, absolutamente sim.