por Selhe Moreira
Tela escura e créditos iniciais. Um som abafado de locução é ouvido como se estivesse em movimento, vindo em direção aos espectadores que aguardam, estáticos, o primeiro frame que marcará a abertura de “O último azul”. Aos poucos, ruídos tornam-se palavras de uma propaganda governamental anunciando com entusiasmo digno dos carros do ovo a implementação de uma Colônia custeada pelo Estado para onde serão enviadas todas as pessoas com mais de 75 anos.
É uma forma de homenagem àqueles que muito contribuíram para o país, a voz assegura. Ao abrir da cena, revela-se a fonte móvel da propaganda: não um automóvel, mas um monomotor ostenta os dizeres: “O futuro é para todos.”
Mas o que o a distopia de Gabriel Mascaro (“Boi Neon” e “Divino Amor”) demonstra em seus 86 minutos é o grande sofisma que mora nos discursos populistas comuns a governos autoritários. O futuro aqui é compulsório, onde todos os idosos são convocados a “desfrutar” seus últimos anos de vida sem “preocupar” a juventude produtiva do país. O que para alguns pode soar como sonho de descanso às custas do Estado, para Tereza (Denise Weinberg), uma mulher-operária de 77 anos que mora nesta cidade-sem-nome precariamente industrializada na Amazônia é uma sentença. Ela não quer deixar de trabalhar, não quer sair de onde vive, não quer que mandem no “seu querer” transferindo-o para sua filha junto com um auxílio financeiro. E é nesse ponto de apagamento, em que ser um indivíduo lhe é interditado que inicia a jornada da nossa heroína.
No que poderíamos chamar de um road movie fluvial, Tereza ousa desejar e realizar seu sonho adiado pelo utilitarismo do cotidiano: voar de avião. Simples ao nível de uma ida e volta no mesmo dia, quase pueril pela simplicidade, e absurdamente sofisticado diante dos mecanismos de manutenção de status quo de uma sociedade etarista que vê seus idosos como seres de segunda classe que devem ser tutelados, quando não pajeados, tendo suas vontades e direitos submetidos à chancela de quem tenha melhor discernimento para decidir se eles vem ou vão, ficam ou partem, são ou não são.
Na jornada que empreende para viver esse sonho de liberdade, Tereza encontra no caminho outras figuras tão deslocadas quanto ela, que se tornam catalisadores da sua travessia. Todos também amarrados a seu modo são faísca e gatilho, meio e efeito da mudança que ela deseja e que, em se movendo, acaba por provocar.
A forma como toda essa atmosfera onírica é construída é um mosaico de recursos artísticos e cinematográficos. Uma trilha com marcação rítmica tiquetaqueante reiterando a inexorável passagem do tempo, com melodias artificializadas de sintetizadores que ao mesmo tempo que evocam certo futurismo, nos arremessa em texturas sonoras vintage, oitentistas quase.
Visualmente, a alternância da exuberância das cores das florestas e rios e camadas de desbotamento das partes parcamente construídas reforçam a crueza distópica proposta por Mascaro. Do naturalismo minimalista do cotidiano à possibilidade fuga do real nos elementos fantásticos, como o enigmático caracol da baba azul, tudo na composição provoca, incomoda, move, pois berra inegavelmente: há muita vida a ser vivida em se pagando o preço.
Não à toa, o filme saiu premiado da 75ª edição do Festival de Berlim com o Urso de Prata, além de dois prêmios dos júris paralelos (Júri Ecumênico e Leitores do Berliner Morgenpost). Uma consagração que reconhece o impacto do filme não só pela temática, mas pela forma.
Ao fim, talvez possamos dizer que “O Último Azul” é também um filme sobre amadurecimento. Aqui, no entanto, o ‘coming of age’ ocorre – porque não? – na idade terceira do tempo humano, para provar e provocar que a vida começa, decola ou deslancha no momento em que se decide que é tempo de fluí-la.
Enquanto houver desejo, sonho, vontade haverá sempre uma fantasia azul para desenhar a possibilidade da alforria.

