A década de 1980 é lembrada com certa frequência em tom de nostalgia. Foi um momento mágico e rico em diferentes campos, por isso, ainda é referência na cultura pop. Moda, cinema, literatura, música e novela são exemplos de formatos que foram e ainda são influenciados por aquele período. Stranger Things está aí, desde 2016. Passada nos anos 80, a série se tornou um sucesso mundial, entre outros motivos, usando os benefícios do saudosismo da infância de quem pôde viver a época sem grandes preocupações ou quem já era adulto, mas consegue passar uma peneira nas lembranças e ficar somente com os momentos bons. O que o público esquece, muitas vezes, são os pontos negativos da época e como a intolerância era exacerbada, na época, em diversas partes do mundo. Blue Jean, filme da inglesa Georgia Oakley em cartaz nos cinemas, consegue transmitir a nostalgia da década sem deixar de lado os perrengues que a comunidade LGBTQIAPN+ sofreu durante o governo de conservador de Margaret Thatcher.
Jean (Rosy McEwen, da série O Alienista) é uma professora de Educação Física discreta e que leva uma vida simples. Poucas pessoas sabem de sua orientação sexual e ela separa bem a vida profissional da pessoal. Já sua namorada, Viv (Kerrie Hayes, da minissérie The Living and the Dead), tem uma postura mais incisiva e militante e não disfarça que é lésbica.
Elas se dão bem, apesar de alguns ruídos na relação, como a insatisfação de Viv perante à vida dupla da namorada. Mas as coisas complicam um pouco mais para Jean com a chegada de uma nova aluna, Lois (a estreante Lucy Halliday), uma jovem introvertida e deslocada que sofre bullying na escola e, lésbica, não tem referência ou apoio de ninguém, somente da sua inocência misturada à arrogância que a juventude carrega ao acreditar que sabe tudo. Enquanto isso, o governo britânico, sob a liderança de Thatcher, passa a tomar medidas homofóbicas, reduzindo cada vez mais a visibilidade LGBTQIAPN+.
Todos esses fatores, somados à relação que Jean tem com a família, colidem e a professora precisa ter pulso firme para determinar como quer viver a própria vida.
As três personagens centrais, Jean, Viv e Lois, podem ser vistas como a mesma pessoa em momentos diferentes da vida ou três maneiras de enfrentar o preconceito. A maneira que Jean encontrou foi se manter neutra, quase invisível, e isso pode parecer uma atitude covarde, mas, olhando atentamente, é possível reparar em sua coragem de se permitir enxergar todos os lados. Os supostos privilégios que a neutralidade traz tem seu preço que somente quem enfrenta uma situação parecida pode saber.
Rosy McEwen brilha no papel de Jean e transmite a angústia da personagem através do olhar e de gestos controlados. É uma personagem que já se habitou à opressão e os esforços para viver assim já viraram hábito.
Blue Jean consegue mostrar que, independente da postura de cada personagem, a agressão que as três sofrem é a mesma porque fere a existência delas, além do desrespeito diário. Ser lésbica na Inglaterra governada por Thatcher era algo subversivo e, independente de como alguém poderia encontrar uma maneira de sobreviver a isso, era necessário ter muita força, muitas vezes, desconhecida.
Ainda assim, o filme tem elementos nostálgicos, como a trilha sonora, a ambientação e a ausência de celulares e redes sociais. Por mais que Jean pudesse temer a revelação de sua sexualidade, a gente pode questionar o alcance dos danos. Enquanto a internet, hoje, permite que cada foto percorra o mundo em segundos, em 1980, os danos que a mesma foto (mesmo que divulgada em território restrito), teria respaldo legal.
Blue Jean filme foi reconhecido em diversos circuitos internacionais, como o Festival de Cinema de Veneza, na categoria de voto popular, no British Independent Film Award, com cinco indicações, levando o prêmio de Melhor Atriz, e ainda conseguiu uma indicação ao BAFTA deste ano em Melhor Estreia de Roteirista, Diretor ou Produtor Britânico para Georgia.
No Brasil, Blue Jean chega aos cinemas pela Synapse Distribution, parte do grupo Sofa Digital desde 2018.

