O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica de A Sociedade da Neve possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
COMO QUALQUER PESSOA QUE NASCEU NA DÉCADA DE 1980, a tragédia dos estudantes uruguaios fez parte do meu imaginário – reforçado pela dramatização Vivos, produção que costumava causar pesadelos durante suas exibições na TV aberta. A ideia de ficar perdido no meio do nada, passando frio e sendo obrigado a praticar canibalismo para sobreviver não é exatamente o tipo de coisa que uma criança deveria consumir. Mas eram os anos 1990. Terra sem lei.
Protagonizado por um sósia indeciso entre ser o Rafael Nadal ou o Adam Driver, A Sociedade da Neve surpreende quando mostra a morte do seu narrador. Não chega a ser uma grande invenção ou novidade narrativa, afinal, Alfred Hitchcock já havia feito isso lá nos anos 1960 com Psicose, mas não deixa de ser uma bela forma de mexer com o público. Desenvolvemos preocupação e empatia por Numa (Enzo Vogrincic, o sósia indeciso) e quando ele morre, é um verdadeiro choque.
Bayona consolida a sua fama de cineasta da tragédia. Sem apelar para o sensacionalismo ou para emoções rasas, o cineasta demonstra a evolução no seu olhar e conduz a narrativa criando momentos de tensão e angústia, assim como em O Impossível (The Impossible, 2012). Existem certas semelhanças, como o clima da cena emocionante do reencontro dos sobreviventes com os familiares e (principalmente) o momento em que os sobreviventes são soterrados por uma avalanche. Diretores como Roland Emmerich (O Dia Depois de Amanhã) ou Michael Bay (A Rocha) prefeririam abandonar a perspectiva dos protagonistas e criar um show visual para os espectadores. Ao privilegiar o drama dos seus personagens, Bayona puxa o espectador para o mesmo sentimento de pavor sobre o que está acontecendo. Não há necessidade de ser gráfico.
Outro mérito da sua direção é a maneira como trabalha o detalhe mais chocante de toda essa história. Para sobreviverem, você deve saber, os uruguaios precisavam comer uns aos outros – e não no sentido gostoso da palavra. Bayona destaca o conflito moral dos jovens, que chegam até mesmo a questionar se seriam perdoados por Deus. Quando um estudante de medicina toma a nobre decisão de assumir a responsabilidade para diminuir o peso da decisão, o diretor também acerta ao manter a câmera afastada, sem conseguir “ver” ou mostrar o que está acontecendo. Melhor que ser óbvio e mostrar a carne humana sendo arrancada dos cadáveres, o diretor dedica atenção para o impacto dessa necessidade nos sobreviventes. Especialmente naqueles que relutam até o fim.
Com suas aproximadamente 2h30, A Sociedade da Neve se garante como um dos filmes obrigatórios da temporada para os fãs de adaptações de histórias reais. Se prepare para sentir muito frio e tensão ao conhecer uma das histórias mais incríveis de sobrevivência, além de alimentar um trauma até então inerte de viajar de avião pelo Chile e passar pelas cordilheiras dos Andes. Boa sorte para quem fizer esse trajeto depois de ver o filme.
A Sociedade da Neve está disponível na Netflix.

