Existe um tipo de terror que não precisa de fantasma, demônio ou maldição antiga — basta um casal dizendo “a gente tá bem” com aquele sorriso de quem acabou de discutir no carro. Juntos entende isso com uma clareza quase ofensiva. O estreante Michael Shanks faz um filme que é, ao mesmo tempo, alegoria de codependência e parque de diversões de body-horror: uma comédia cruel sobre o medo mais comum do planeta — o de amar alguém e, mesmo assim, sentir que vocês estão virando duas ilhas com Wi-Fi ruim.
Tim (Dave Franco) e Millie (Alison Brie) estão naquele ponto da relação em que tudo já aconteceu, menos o que deveria acontecer: uma decisão adulta. Ela consegue um emprego no interior como professora; ele é o músico trintão “a um show de estourar” desde 2016. Mudança de cidade, mudança de vida, mudança de energia… aquela fantasia de casal que foge do caos urbano para “recomeçar”. Só que Juntos tem a decência de não fingir que isso resolve alguma coisa. O interior aqui não é refúgio, é amplificador: quando some o barulho da cidade, dá para ouvir a relação rangendo.
Shanks é eficiente em fazer você entender quem são esses dois sem precisar de flashback explicativo. Tim tem a energia do cara que quer apoio, mas treme quando chega a hora de retribuir. E é aí que o filme dá a primeira facada socialmente dolorosa: no meio de uma festa, Millie pede Tim em casamento, e ele hesita. Aquela pausa é um filme inteiro em dois segundos. Não é só “ele não quer casar”. É “ele não sabe se quer crescer com ela”. E esse tipo de dúvida não é metafísica — é prática, diária, humilhante.
A partir daí, o roteiro começa a plantar sinais como quem coloca tachinhas no chão: uma descoberta sinistra no teto da casa, um serrote elétrico que grita “Chekhov” com vontade, e notícias sobre um casal desaparecido na região. Então vem o acidente numa trilha e a descida para uma caverna com design de pesadelo (tem um quê de Alien ali, como se o interior da terra fosse um organismo). Eles passam a noite ali — e, acredite, nada de bom acontece quando um casal em crise decide “se abrigar” num buraco úmido no meio do nada. Aí Juntos vira outra coisa: o casamento de Cronenberg com a terapia de casal, com padrinhos Carpenter e The Thing olhando de canto e aprovando.
Eu não vou estragar o mecanismo central (o filme pede para ser descoberto no susto, como relacionamento bom: você acha que entende e, de repente, não entende mais). Mas dá para dizer o suficiente: depois da caverna, começa uma puxada literal entre os dois. Não é só emocional. É física. É pegajosa. É… comprometida. Tim passa por episódios que parecem ataques autodestrutivos, e o filme usa isso com um sadismo esperto: é ruim para os ossos dele, mas, aparentemente, ótimo para a vida sexual do casal. E aqui o longa mostra o tipo de humor que eu adoro: aquele que te faz rir e se sentir culpado por ter rido. Tem uma cena de sexo em banheiro que já entra fácil para o top “o que eu acabei de ver?” do ano — e digo isso com respeito, horror e um pouco de inveja da coragem.
O grande trunfo é que Juntos não usa body-horror como enfeite. Ele é a metáfora em estado bruto: “e se o casal que se ama demais… passasse do ponto e começasse a não saber onde um termina e o outro começa?” Shanks entende a lógica da codependência e coloca isso no corpo, sem delicadeza. A união aqui não é poesia; é costura mal-feita, é emenda, é cola. E o filme faz você perguntar, rindo e se encolhendo: “quantas vezes eu confundi amor com medo de ficar sozinho?”
Alison Brie e Dave Franco (casal na vida real) entregam uma química que não parece ensaiada — parece acumulada. E isso é crucial, porque o filme exige deles performances físicas insanas: dobrar, esticar, torcer, resistir, ceder. Eles fazem o impossível parecer inevitável. E os efeitos práticos/visuais são um espetáculo por si: dá para sentir o prazer artesanal ali, aquela coisa do cinema que ainda gosta de te enganar com matéria, não com filtro.
Damon Herriman aparece como o vizinho/colega de trabalho Jamie, que traz um tempero perfeito: ele é gentil demais para ser só “alívio”, estranho demais para ser só “boa pessoa”. O tipo de presença que o interior produz: gente que parece doce, mas também parece saber demais. Ele funciona como testemunha desconfortável da implosão íntima do casal — e o filme se diverte com a ideia de que, às vezes, o horror mais humilhante é alguém ver você tentando salvar o relacionamento.
No placar do Cinema de Buteco: Juntos é um romance de horror que entende que amar é assustador porque envolve perder controle — e às vezes perder a própria forma. É grotesco, engraçado, surpreendentemente terno por baixo da gosma e, melhor ainda, é daqueles filmes que você termina pensando: “ok… então talvez eu precise de limites”. Ou de um serrote.

