A gente começa pelo banheiro. Sim, banheiro — porque é ali que Kevin Lomax (Keanu Reeves) se encara no espelho e, por um segundo, parece que o filme rebobina a própria vida do cara. É aquele microestalo de déjà vu que, na nossa conversa, virou hipótese: e se ele já tivesse vivido esse caminho antes — e antes — e antes? Um loop da vaidade, sempre voltando ao ponto onde escolhe ganhar no júri e perder a alma no caminho. A câmera lava o rosto e reabre o jogo: Gainesville ficou pequena, a mãe religiosa aperta o terço, Nova York acende como vitrine de tentação e John Milton (Al Pacino) observa tudo como maître de um restaurante sem reservas no além.
Rever o filme hoje confirma o que a memória já suspeitava: os efeitos estão datados? Alguns, sim — aquela pele reptiliana surgindo em mármore e vitral. Mas o K.O. não vem do CGI: vem de texto e atuação. Milton, em três movimentos (o flerte de salão, a catequese no parque, o sermão no final), redefine “advogar”: falar é seduzir, argumentar é acender fósforo em sala fechada. Al Pacino não “exagera”; ele coreografa o exagero como método — o diabo de terno que oferece o mundo e ainda deixa a gorjeta da autojustificação. O homem vende o inferno como upgrade de carreira.
Keanu faz o narcisista que jura ser ético: só aceita caso quando acredita na inocência — até o minuto em que a verdade estraga o prazer da vitória. Aí entra o traço que a gente cutucou na live: a privatização da ética. “Só desta vez”, “está todo mundo fazendo”, “ninguém ganha todas”… Como quem mexe um milímetro as regras para caber no bolso. E quando os milímetros viram quilômetros, Charlize Theron já pagou a conta. Mary Ann nasce self-made, parceira, corpo e voz de uma vida comum e possível; em Nova York, sobra tempo, sobra dinheiro, falta o marido. “Cabeça vazia, oficina do diabo” não é moralismo barato aqui: é diagnóstico de uma mulher isolada numa torre de vidro enquanto o marido, dopado de vaidade, trata a dor dela como “ruído operacional”. A cena do abraço — ele consola e, por um lampejo, a alucinação sexual toma o quadro — é o filme resumido em um choque: desejo, culpa e ausência no mesmo plano. Reijn não dirigiu esse, mas a gente jura que o core de erotismo como poder já está todo aqui.
E tem o metrô. Aquele momento em que Milton muda de idioma, antecipa uma desgraça íntima e desmonta a valentia de um desconhecido apenas com “informação privilegiada”. O diabo não puxa cordinhas; ele arruma o palco. “Eu só dou o cenário, vocês puxam as próprias cordas.” Frase para tatuar no cold open de qualquer série sobre compliance. A mãe no elevador? Uma piscadela suja: “já veio a Nova York antes?” — e a gente, vendo pela segunda vez, percebe que a pergunta carrega todo um DNA soterrado.
O caso do professor pedófilo — o tal que esfrega os dedos debaixo da mesa do tribunal — é o teste de Rorschach do protagonista. Kevin vê, pede recesso, corre pro espelho, volta e… vence. A vitória vira veneno. Mais adiante, o caso do magnata (Craig T. Nelson) traz a mesma encruzilhada com holofote. “Ninguém ganha todas.” Milton cutuca o ponto exato onde herói vira cúmplice. Quando a gente debateu se advogados “devem” defender culpados, a resposta séria ficou simples: existe profissão, existe sistema, existe devido processo. Mas o filme não é sobre a advocacia — é sobre o que a vitória te cobra quando a consciência ficou olhando o relógio.
Charlize é a espinha de vidro que racha antes do prédio cair. O figurino perde cor, o apartamento cresce, as amigas ricas viram assombração polida. E Kevin, sempre a um passo de oferecer o que ela realmente precisa (tempo, ouvido, presença), não oferece. “Pede uma licença.” “Ninguém vai te julgar.” “Vai cuidar dela.” Milton chega a propor o gesto certo — não por bondade, por estratégia. E Kevin escolhe o caso, não a mulher. Na nossa releitura, ficou impossível não enxergar: ele ama Mary Ann, mas ama mais a imagem de si mesmo vencendo.
O final é sermão, ópera e stand-up num altar de mármore. Milton prega o evangelho da vontade: melhor reinar no inferno do que servir no céu. E, num salto que divide plateias desde 1997, o filme dá a Kevin a chance de escolher. Será que ele escolhe? Ou será que estamos só no reinício do loop? aquele primeiro plano no banheiro ganha outro sentido: livre-arbítrio existe — mas a vaidade tem replay automático. A gente fecha a sessão com a sensação de que viu um drama jurídico, um thriller sobrenatural e uma comédia negra sobre ambição, tudo dentro do mesmo terno Armani.
Se “clássico” é o filme que melhora quando a gente melhora, O Advogado do Diabo cresce a cada revisão. Menos pelo susto, mais pelo espelho.
FAQ estendido – O Advogado do Diabo
É mais filme de tribunal ou de terror?
É híbrido: começa jurídico, escorrega para o metafísico e termina em sermão diabólico — no bom sentido.
Os efeitos especiais envelheceram?
Alguns, sim. Mas o impacto vem de texto e atuação; o CGI é tempero, não prato principal.
O filme é sobre livre-arbítrio ou determinismo?
Sobre livre-arbítrio sob sequestro: você escolhe, mas a vaidade te oferece sempre a mesma “melhor” opção. Daí o gosto de loop.
O que faz a atuação do Al Pacino funcionar tanto?
Ele não “grita”; ele musicaliza a tentação. Carisma como arma: cada fala vira contrato verbal com cláusula minúscula.
E o Keanu Reeves? Ele convence como advogado ambicioso?
Sim. Kevin é narcisismo com ternos bons: acredita no próprio código até precisar dobrá-lo só “desta vez”.
Por que a Charlize Theron é o coração trágico do filme?
Porque Mary Ann é quem paga a conta psíquica do sucesso. Sem ela, o filme viraria alegoria fria; com ela, vira ferida aberta.
Tem misoginia?
O filme mostra estruturas (isolamento, gaslighting, objetificação) para criticar — não para celebrar. A dor dela é levada a sério.
Qual cena “define” o filme?
Três empates técnicos: o metrô, o abraço/alucinação, o sermão final. Se tiver de escolher uma, escolha o sermão: é o manifesto.
Dublado ou legendado?
Vá de legendado para pegar a retórica do Pacino em toda a voltagem.
É pesado para quem evita terror?
Mais tenso que “assustador”. Violência gráfica é discreta; o que pesa é o tema (abuso, manipulação, suicídio).
Se o casal tivesse ficado em Gainesville, seria feliz?
Talvez por um tempo. Mas o filme sugere que o loop da vaidade bateria à porta de outro jeito.
O final “reseta” o tempo?
Interpretação aberta. A leitura mais rica: Kevin ganha nova chance… mas com o mesmo calcanhar.
Vale rever hoje?
Muito. Continua afiado sobre poder, ética e autopromoção — e Pacino segue em top 10 da carreira.
Classificação indicativa?
No Brasil, 16 anos (temas adultos e cenas de nudez). Se você é sensível a suicídio e abuso, vá preparado.
Uma frase para levar do filme?
“Vaidade… meu pecado favorito.”

