priscilla review do filme

Review Priscilla: Sofia Coppola desmitifica Elvis e dá voz às mulheres

por Julie Ribeiro
priscilla posterUma adolescente de 14 anos se apaixonando e vivenciando o primeiro amor, com graça, beleza, poesia, sutilezas e inseguranças que a experiência evoca. O “detalhe” é que do outro lado está um dos maiores astros da música de todos os tempos, à época com 24 anos. Em Priscilla (2023), Sofia Coppola apresenta o percurso de Priscilla Presley em seu relacionamento de pouco mais de dez anos com Elvis Presley.
Priscilla é vivida pela ótima Cailee Spaeny, que venceu o Volpi Cup de Melhor Atriz no Festival de Veneza deste ano, em um retrato delicado e contundente de uma figura que, por anos, ficou à margem de seu ex-marido. Já Elvis é representado por Jacob Elordi, de Euphoria. Coppola nos apresenta, de forma intimista e sutil, a transformação de um romance, permeado pela ilusão e inocência do primeiro amor, com lapsos de memória, até a conversão em um relacionamento abusivo, permitido por poder, dinheiro e fama.
O trabalho de caracterização da personagem central é um dos pontos fortes da narrativa, e mostra como a menina que usa tons pastéis, rosa e azul, e nenhuma maquiagem, se transforma na mulher de um rock star com cabelo preto, penteado e delineado reconhecíveis. Aliás, transformação esta totalmente direcionada por Elvis, que monta uma mulher a seu gosto, escolhendo os vestidos e as cores que ficam bem para Priscilla, que se acostumou a vestir uma aparência, chegando até mesmo a realizar camadas de maquiagem momentos antes de dar à luz.
O figurino e a direção de arte também são pontos fortes do filme, com uma paleta em “candy colours”, assim como a trilha sonora, como frequentemente ocorre na obra de Coppola. Por mostrar “o outro lado da história”, as músicas de Elvis não foram liberadas para uso no longa, o que não faz nenhuma falta. Com a não liberação, a diretora optou por utilizar músicas contemporâneas da banda de seu marido, Phoenix, e versões cover de baladas da época do filme.
Voltando ao astro, a primeira imagem de Elvis é de um jovem comum, com um cardigã claro e sem topete. No entanto, a figura se cria assim que vai para o piano e hipnotiza a todos com sua voz. Coppola nos apresenta o Elvis apaixonado por atuação, que se espelha em Marlon Brando e James Dean, que comenta de “Sindicato de Ladrões” (1954) e que sabe as falas de Humphrey Bogart nos filmes. Ainda, o filme pincela sobre o controle de Coronel, empresário de Elvis, e mostra as diversas relações extraconjugais do astro, sempre noticiadas pela imprensa.
REVIEW PRISCILLA - PRISCILLA E ELVIS NA FESTA DE CASAMENTO
Contudo, Coppola nos mostra um Elvis despido da capa de ídolo, humanizado e autocentrado. É ele quem decide sobre as roupas que Priscilla veste, sobre o tom de seu cabelo, sobre quando ela poderá vê-lo, sobre quando vão fazer sexo, e até sobre quando vão se casar. Priscilla não tem voz, e simplesmente aceita tudo, em uma figura que precisa estar sempre disponível, à espera do astro.
Em determinado momento, Priscilla é engolida por uma multidão de fãs/garotas, assim como foi engolida pelo ego de Elvis, que chegou a questioná-la quando tentou conseguir um emprego: “ou você tem uma carreira, ou você fica comigo”. Ainda, o filme traça um Elvis violento por vezes, que joga uma cadeira na parede, e tenta forçar sexo com Priscilla sem consentimento, logo seguido por arrependimento e um pedido de desculpas, com o clássico “foi sem querer”. Elvis chega a falar que muitas mulheres gostariam de estar no lugar dela, e que ele precisa que ela esteja sempre disponível.
Adolescente tentando se formar no “high school“, Priscilla tem que acordar cedo para ir à aula, mantida por pílulas, enquanto Elvis dorme até às 15h. A garota chega a dormir por dois dias seguidos, após tomar uma pílula que o cantor lhe ofereceu. Ainda, Coppola nos apresenta a adolescente tendo que estudar em uma casa regada à bebidas e muito barulho, e se esforçando para suportar as traições, quieta.
Apesar disso, Coppola nos apresenta diversas cenas amorosas e divertidas, como Elvis indo buscar a namorada em casa pela primeira vez, ou com o astro tirando fotos com as freiras da escola da namorada. A obra nos apresenta a construção da intimidade entre o casal, que chegam a passar dias na cama assistindo a filmes, e se fantasiam para tirar fotos um do outro. Ainda, Priscilla, que combina as cores dos vestidos com as armas presenteadas por Elvis  usa a imagem do cantor com uma colega da escola para colar na prova e passar de ano.
A meu ver, um dos grandes méritos do filme é que a diretora optou por não mostrar o ídolo/mito/astro. Na única cena em que Elvis aparece como a lenda da música, a câmera o enquadra de costas, afastada, com ele sendo ofuscado pela luz. No entanto, Coppola não se esforça por criar uma imagem antipática ou vilanizar Elvis, porque simplesmente não importa. O longa é sobre Priscilla, e sobre como uma mulher apaixonada consegue viver um grande amor, mas, sobretudo, como ela consegue se libertar de uma relação abusiva.
Em determinado momento, Priscila questiona Elvis se ele não pensa sobre como ela se sente e, adivinhem? O astro diz que enxerga uma “mad woman“, já que, segundo ele, o que importa é apenas o compartilhamento dos “interesses e filosofias” do próprio. Priscilla, à margem da figura com forte carisma, ficou à sua sombra por anos, mas, enfim, consegue se libertar. “Se eu ficar, nunca vou embora”, decide. E ela vai. Ao som de uma música escrita e cantada por Dolly Parton, que Elvis tentou gravar, mas não nunca conseguiu.
No retrato da desconstrução de um mito, não faz falta a voz de Elvis aqui. O que Coppola elabora é construir a imagem de Priscilla, concedendo a ela o direito de fala. Em uma cultura cinematográfica que comumente celebra astros, quase sempre homens, é importante a mudança de olhar, ao lançar luz sobre a perspectiva da destruição dos desejos dos “coadjuvantes” que tiveram as vidas arrasadas pelo egocentrismo das estrelas-cometas.
“Priscilla” tem previsão de estreia no Brasil em 4 de janeiro, mas alguns cinemas pelo país realizam pré-estreias a partir desta quinta-feira, 21 de dezembro.