Review Sirat: rave no fim do mundo

poster siratTem filme que você assiste. Sirāt te sequestra, te joga no banco de trás e acelera no deserto como se a humanidade fosse um boato mal-checado no rádio. Óliver Laxe pega uma ideia que, no papel, poderia virar “thriller de pai desesperado” e transforma num transe físico, sonoro e espiritual — desses que deixam você saindo do cinema com areia imaginária nos dentes e a sensação de que alguma coisa em você mudou de lugar. E sim: é um dos meus favoritos do ano, sem falsa modéstia e sem aquele elogio educadinho de festival. É o tipo de obra que te encara e diz: “bonito o seu conforto, pena que acabou”.

O título já vem com a navalha embutida. “Sirāt” é “caminho”, mas também é ponte estreita entre paraíso e inferno na tradição islâmica — uma passarela moral onde qualquer vacilo vira queda. Laxe não usa isso como curiosidade de Wikipedia (embora funcione assim). Ele filma como sentença. O mundo do filme está em estado de emergência (o texto deixa a guerra mundial como ruído de fundo, porque o apocalipse, convenhamos, não precisa de briefing). A abertura é uma rave monumental no sul do Marrocos: caixas de som como monólitos negros, gente dançando como se o corpo fosse a última moeda com valor, e a câmera te puxa pra dentro desse delírio com um respeito brutal pela materialidade do som. A trilha de Kangding Ray não “acompanha” — ela governa. Você não ouve; você obedece.

No meio desse bacanal do fim dos tempos, aparece Luis (Sergi López), um homem de meia-idade com a energia de quem entrou por engano numa festa que não termina nunca. Ele está ali com o filho Esteban (Bruno Núñez) e um cachorro, procurando a filha desaparecida, Mar, que pode estar entre os ravers. Quando autoridades armadas fecham a festa e mandam europeus embora, um pequeno grupo foge rumo ao sul atrás de outra rave. E Luis, no impulso mais humano e mais patético do mundo — esperança misturada com negação — segue junto. A partir daí, Sirāt vira um filme de sobrevivência que tem DNA de Mad Max e o nervo de O Salário do Medo/Sorcerer: estrada como purgatório, máquina como fé, e um horizonte que nunca promete nada.

O milagre é que nada soa derivativo. Laxe tem aquele dom raro de filmar paisagem como se ela estivesse julgando os personagens. E o deserto — fotografado por Mauro Herce — não é cenário: é predador. A textura (filmada em Super 16mm, quando o mundo inteiro quer alisar tudo em digital polido) dá ao calor uma aspereza quase tátil. Você sente o atrito. Você entende por que um pneu estourando aqui parece uma profecia.

E aí vem a parte que muita gente não espera: o coração. Porque o pitch de Sirāt é perfeito pra virar cinismo gourmet — “olha esses europeus alienados dançando enquanto o planeta queima” — mas o filme recusa a superioridade moral fácil. Os ravers (muitos não-atores recrutados desse universo) têm códigos, táticas, solidariedade. Eles dividem gasolina, água, comida e silêncio. Eles viram família improvisada sem precisar fazer discurso. Tem um momento em que alguém basicamente diz: “prefiro esta família” — uma frase que em outro filme viraria meme ou ironia; aqui vira confissão. Laxe acredita que, mesmo quando o mundo fica pitiless, a gentileza ainda pode sobreviver. E essa crença, num cinema que adora posar de niilista inteligente, é quase subversiva.

Mas não se engane: Sirāt não é abraço quentinho. É abraço com espinho. A tensão é constante e a tragédia chega do jeito que a vida faz quando quer te humilhar: sem música de aviso, sem montagem de preparação, sem “agora é a cena importante”. Quando a violência aparece, ela não vem com glamour — vem com a frieza do acaso e a brutalidade do inevitável. É por isso que o filme gruda: ele não te deixa negociar com a narrativa. Você atravessa. Se conseguir.

Não à toa, Sirāt saiu de Cannes com o Prêmio do Júri e virou queridinho de temporada, com a NEON cuidando do lançamento nos EUA (corrida de prêmios incluída). E, se você estava esperando no Brasil, anota a data concreta: a estreia por aqui foi marcada para 26 de fevereiro de 2026, com anúncio em veículos daqui.

No fim, o que me pega é o contraste: Sirāt te dá o prazer primitivo do cinema como experiência corporal — imagem grande, som que empurra as costelas — e, ao mesmo tempo, te deixa com uma ideia incômoda martelando: talvez o caminho mais estreito não seja a travessia do deserto… seja a travessia do outro. Ainda mais quando tudo está acabando e o mundo insiste em te ensinar a ser egoísta. Laxe faz o oposto: ele filma o colapso e, no meio dele, encontra vínculo. Isso não é fofura.