Na propaganda de fim de ano da Havaianas, Fernanda Torres comete um crime hediondo: ela fala. E não só fala — ela ousa fazer trocadilho. Em um país onde ironia virou atentado ideológico, ela disse:
“Não comece 2026 com o pé direito.”
Pronto. Bastou isso para a tempestade começar.
A frase, típica jogada de linguagem publicitária, subverteu o velho clichê de virada de ano — e ao invés de desejar boa sorte com o pé direito, a atriz propôs um 2026 com os dois pés. Na jaca. Na estrada. Na porta. Na vida. Corpo inteiro, presença total. Mas a direita brasileira — sempre com o ouvido apurado para deturpar — enxergou ali um ataque simbólico.
“Pé direito”? Ah, claro. Isso é um deboche com a direita política! Uma campanha de chinelo virou revolução marxista.
E como todo bom teatro precisa de histeria, o ex-deputado Eduardo Bolsonaro, direto de seu exílio voluntário nos EUA, publicou um vídeo jogando seu par de Havaianas no lixo. Em câmera lenta, quase chorando. Não pela sandália, mas pela “ameaça ideológica” que ela representava. Um verdadeiro Oscar de melhor atuação em roteiro inexistente. Já o deputado Nikolas Ferreira aproveitou para engatar sua participação especial: “Havaianas, nem todo mundo agora vai usar”. Pronto. Estava montado o cenário. Boicote declarado.
E o mercado, sensível como sempre, reagiu: as ações da Alpargatas, dona da marca, despencaram cerca de 3% na B3. Porque nesse país, até piada custa dinheiro. Piada demais, ação de menos.
Mas o que talvez tenha doído mais na ala conservadora nem tenha sido a frase. Foi a atriz. Fernanda Torres, que este ano levou o Oscar por “Ainda Estou Aqui”, filme que retrata a resistência à ditadura militar no Brasil. Uma mulher premiada, com voz, opinião, e o pior: liberdade criativa. Inaceitável para quem acha que cultura tem que andar de coleira.
E o cinema, onde entra nisso tudo?
Cinema é provocação. É arte que cutuca. E se os comerciais modernos são os curtas-metragens das massas, esse da Havaianas ganhou mais audiência que muito filme nacional. Ganhou narrativa, tensão, vilões, drama de rede social e até efeito colateral na Bolsa. É roteiro puro, com todos os clichês: herói, vilão, cancelamento, e claro, um povo que ama ver briga mais do que ver filme.
A campanha virou enredo. Gênero? Comédia política. Classificação indicativa? Livre pra todos os públicos, mas ofensiva para quem vê ameaça comunista até na sola do chinelo.
Conclusão:
No fundo, essa polêmica não é sobre uma frase. Nem sobre um chinelo. É sobre controle de narrativa. Sobre quem pisa e quem é pisado. Sobre quem pode falar e quem deve calar.
Fernanda Torres quebrou a quarta parede. Disse uma frase com tom irônico e subversivo. E como o bom cinema ensina: quando a personagem olha pra câmera e fala diretamente com você, é porque a verdade não pode mais ser ignorada.
Então sim: que venha 2026. Com os dois pés na jaca, no chão, no cinema, e se precisar, no traseiro da caretice.
Havaianas: todo mundo usa. Todo mundo ama. E se não ama, pelo menos rende um bom roteiro.

