A Garota da Agulha é aquele filme que não “começa pesado”. Ele nasce pesado. Magnus von Horn filma a pobreza como se fosse um quarto sem janela: o ar vai acabando e você nem percebe quando começou a sufocar. E o truque mais cruel é que ele faz isso com uma beleza formal tão precisa — preto e branco em alto contraste, sombras que parecem mãos, portas rangendo como sentença — que você se pega admirando o quadro enquanto a história te pune por ter olhos. É miserabilismo? É. Só que é miserabilismo com dentes: o tipo de cinema que não quer te comover, quer te marcar.
A base é real, e por isso pior: a trama se inspira no caso de Dagmar Overbye, figura histórica dinamarquesa ligada a crimes contra crianças no início do século XX. Mas o filme não coloca Dagmar no centro como “serial killer de vitrine”, porque isso seria fácil demais — e, francamente, cafona. O foco é Karoline (Vic Carmen Sonne), costureira em Copenhague, uma mulher na beira da miséria que vai sendo empurrada de um canto para outro como se a cidade tivesse alergia a gente pobre. Ela está prestes a ser despejada, o trabalho é uma humilhação diária, e a sensação é clara: não existe rede, não existe acolhimento, não existe “vai dar certo”. Existe sobrevivência.
O filme dá a ela um micro-respiro de esperança só para arrancar com mais prazer. Karoline se envolve com o chefe, Jørgen (Joachim Fjelstrup), que promete casamento. Só que promessa, quando atravessada por classe, vira piada: a mãe dele cancela tudo ao descobrir a gravidez, e Karoline volta para a rua com o bônus da solidão e da condenação moral. É um mecanismo velho como o mundo: a sociedade perdoa pecado de homem com dinheiro e transforma gravidez de mulher pobre em crime de existir.
É nesse ponto que o título vira lâmina. Karoline tenta abortar com uma agulha — e eu não vou descrever isso de modo gráfico. O que importa é o gesto: a agulha como símbolo de desespero, de corpo sem autonomia, de uma vida em que as escolhas são todas ruins e você só escolhe qual te destrói mais devagar. A tentativa é interrompida por Dagmar (Trine Dyrholm), que aparece oferecendo “ajuda”: ela diz que consegue encontrar um lar para o bebê por uma taxa. A proposta soa como misericórdia dentro de um mundo que só oferece porta na cara. E é exatamente assim que a armadilha funciona.
Von Horn filma esse percurso com uma abordagem quase de horror, e aí está a sacada que coloca o longa acima do “drama de sofrimento” genérico. A fotografia (Michal Dymek) cria quadros que lembram expressionismo e filmes de monstro clássicos: sombras esticadas nas escadas, rostos surgindo em recortes de luz, figuras mascaradas em cantos escuros. Só que o “monstro” aqui não é o sobrenatural. É o sistema — e o jeito como ele fabrica monstruosidades. Você entende por que tanta gente comparou com a linguagem dos monstros da Universal: não pelo cosplay cinéfilo, mas porque o filme trabalha a ideia da “monstrualização do outro” — a mulher pobre, a mãe indesejada, a pessoa fora da norma — como combustível narrativo.
E, quando o filme finalmente revela o que Dagmar realmente faz (e faz cedo o suficiente para você não achar que é “plot twist”), a sensação não é “caramba, que chocante”. É “claro”. Porque a lógica já estava plantada: se a sociedade trata criança pobre como problema, sempre vai existir alguém disposto a lucrar com o descarte. Dyrholm não interpreta Dagmar pedindo desculpa pelo mal. Ela interpreta com uma intensidade fria, quase hipnótica, que te obriga a encarar a parte feia da pergunta: o que, exatamente, esse mundo recompensava nela?
Vic Carmen Sonne, por sua vez, é coragem pura. Karoline não é santa de vitrine — e isso é essencial. Ela erra, ela vacila, ela se humilha, ela agarra qualquer promessa de teto como se fosse amor. E essa ambiguidade impede o filme de virar catecismo moral. Ao invés de dizer “olha como ela sofre”, Von Horn diz: “olha como ela é empurrada para lugares onde sofrer vira rotina”.
Sim: o filme é tão consistentemente sombrio que, em certos momentos, a miséria pode parecer monotonia — um corredor de sofrimento sem variação. Mas talvez essa seja a ética do projeto. Não dá para contar essa história com melodrama, nem com alívio cômico, nem com a catarse confortável do “aprendizado”. O filme quer te deixar com a sensação de que a agulha não está num estojo. Está na sua pele. E corta.
No placar do Cinema de Buteco: A Garota da Agulha é cinema de horror sem fantasma — só com gente. E isso é o que torna tudo mais difícil de esquecer.

