Se você achava que Succession já tinha espremido até a última gota de veneno do capitalismo de herança, Jesse Armstrong olha pra sua ingenuidade e responde com um sorriso de quem acabou de vender o futuro em NFT: Mountainhead é o pós-festa do apocalipse, a ressaca moral de quatro bilionários que se reúnem num retiro alpino enquanto o mundo lá embaixo desaba feito castelo de cartas molhado. E o detalhe delicioso é que eles não desabam junto — eles fazem brainstorming. Armstrong escreve e dirige (estreia na direção de longa) como quem sabe exatamente onde dói: no lugar em que “visionário” vira sinônimo de “irresponsável com bom networking”.
O cenário é uma mansão em Utah tão obscenamente rica que parece ter sido projetada por um arquiteto que odeia seres humanos comuns. É o tipo de casa que não tem “porta”, tem “declaração de poder”. E é lá que se enfiam Randall (Steve Carell, num modo guru-VC que dá vontade de jogar um copo d’água benta no monitor), Hugo “Souper” Van Yalk (Jason Schwartzman, o bilionário “pobre” — só 521 milhões, coitado, praticamente um MEI do Vale do Silício), Venis (Cory Michael Smith, um Musky sem carisma e com risada de quem acha que a própria timeline é a Constituição) e Jeff (Ramy Youssef, o único com aparência de senso comum — o que, nesse zoológico, equivale a ser considerado um agente infiltrado). Eles chamam o encontro de “sem negócios”, como se bilionário conseguisse desligar o capitalismo igual quem coloca celular no modo avião.
E aí Armstrong faz o que sabe: transforma conversa fiada de gente poderosa em arma de destruição de autoestima. Enquanto os noticiários e os celulares anunciam caos global — crises, colapsos, convulsões — esses quatro tratam o fim do mundo como um bug interessante: “curioso”, “otimizável”, “monetizável”. O filme tem a audácia de dizer o indizível com a naturalidade de quem viu acontecer: a catástrofe não é um acidente de percurso; é um efeito colateral aceito no pitch deck. A crise aqui nasce de IA, desinformação e plataforma social — e, como todo bom incêndio moderno, foi acesa com a desculpa de “crescimento” e “inovação”.
A graça de Mountainhead é cruel porque é precisa. Armstrong escreve diálogos mais afiados do que “tech bro” real conseguiria pronunciar sem consultar o ChatGPT — e é justamente aí que mora a sátira: esse povo não é genial; só tem microfone, audiência e impunidade. O texto é uma metralhadora de jargões e máximas cínicas (“a doença piora, a cura valoriza”), mas o filme é esperto o bastante para deixar o silêncio entrar quando o gelo começa a ranger. Em certo ponto, o riso murcha e sobra um frio existencial: não é só que eles são idiotas; é que o sistema premiou a idiotice com poder planetário.
Steve Carell merece um parágrafo só dele: Randall é o tipo de “mentor” que confunde arrogância com iluminação. Ele performa sabedoria como quem vende curso: fala com gravidade, cita o nada, romantiza controle. Schwartzman, por sua vez, faz do “Souper” um espetáculo de insegurança com verniz de superioridade — o sujeito é tão desesperado pra sentar na mesa dos deuses que topa ser o bufão oficial do Olimpo. Cory Michael Smith acerta em cheio no vazio: Venis é a personificação daquele bilionário que acredita que humor é quando os outros têm medo de você. E Ramy Youssef funciona como o termômetro moral (e a vítima anunciada): em grupo de predadores, qualquer pessoa que não morda vira almoço.
Tecnicamente, Armstrong não faz firula: ele encena como quem quer te manter preso na sala com esses caras — um reality show sem prêmio, só castigo. A trilha de Nicholas Britell (sim, o mesmo nome que ainda ecoa Succession na sua cabeça) ajuda a dar aquele verniz de grande tragédia para gente pequena. E o título/casa “Mountainhead” (piscadela nada sutil para Ayn Rand) é a piada que explica tudo: esse é o mundo em que a montanha não é natureza — é pedestal.
Vai polarizar? Vai. Tem gente que vai chamar de “panfleto anti-riqueza”, porque há quem confunda crítica ao delírio de bilionário com inveja de saldo bancário. E tem gente que vai aplaudir como se fosse a primeira vez que o cinema lembrasse: quando o poder está concentrado em quatro homens brincando de futuro, o resto do planeta vira plateia sem ingresso e sem saída. Mountainhead não é sutil, mas também não é burro. É uma comédia sombria com dentes, e cada dente tem um NDA pendurado. Eu dou 4/5: não porque seja perfeito, mas porque é raro ver uma sátira que ri do fim do mundo sem pedir desculpa — e ainda te faz perceber que o gelo sob os pés não é metáfora.

