Robert Eggers não faz cinema para quem entra na sala esperando levar susto cronometrado a cada cinco minutos. O cara que transformou uma cabra chamada Black Philip em ícone pop em A Bruxa agora ressuscita o vampiro mais esquisito da história do cinema, e a experiência está longe de ser confortável. Nosferatu (2024) não é terror de TikTok; é poesia gótica filmada na sombra, onde sexo, culpa e obsessão se misturam até virar a própria maldição.
A trama segue o Conde Orlok (Bill Skarsgård, irreconhecível e monstruoso como deve ser), que atravessa o mar rumo à Alemanha para sugar não apenas sangue, mas também a alma reprimida de Ellen (Lily-Rose Depp). Nada aqui lembra a sedução romântica do Drácula de Coppola: Eggers opta pelo feio, pelo grotesco e pelo desconfortável. Orlok não é sedutor, é uma presença repulsiva, e justamente por isso a relação com Ellen ganha força. Ele é a materialização do desejo reprimido, a culpa que cresce no escuro do quarto, a febre que Freud chamaria de histeria.
É claro que, num mundo treinado a consumir terror como parque de diversões, muita gente saiu do cinema indignada. “Muito escuro”, “sem história”, “o vampiro parece o Seu Madruga”, “morreu transando”. Esses foram alguns dos comentários lidos ao vivo na nossa transmissão do Clube do Filme CdB, e, acredite, eram tão engraçados quanto sintomáticos. A escuridão não é erro de fotografia: é escolha estética. O ritmo arrastado não é falta de roteiro: é cinema que respira como desejo proibido. E morrer transando não é burrice: é metáfora. O francês já chama o orgasmo de “a pequena morte”; Eggers apenas levou isso às últimas consequências.
O filme inteiro trabalha na chave da sugestão. Eggers sabe que nada é mais assustador do que a imaginação do espectador. Assim como Spielberg escondeu o tubarão em 1975 e transformou defeito técnico em virtude estética, Nosferatu brinca com sombras e closes de olhos famintos. Você nunca vê o monstro por inteiro — até o último suspiro, quando o desejo finalmente consome o corpo. E é justamente essa recusa ao óbvio que transforma o filme em experiência imersiva, ainda que irritante para quem queria um manual ilustrado de vampirismo pop.
Bill Skarsgård entrega uma presença física que parece brotar do chão úmido, enquanto Lily-Rose Depp segura o centro dramático com uma personagem que é puro conflito entre repressão e entrega. Nicholas Hoult, como sempre, faz o “cara normal” que serve de contraponto à loucura. A fotografia é propositalmente sombria, quase invisível — e aí está a graça. Não é para ser bonito, é para ser opressor.
No fim das contas, Nosferatu é menos sobre vampiros e mais sobre como o desejo pode destruir uma cidade inteira. Ellen não é vítima passiva: ela manipula, cede e sacrifica. Orlok não é vilão de conto de fadas: é o reflexo carnal daquilo que ela nunca pôde dizer em voz alta. Quem acha isso exagero talvez esteja certo. Mas cinema bom é justamente o que divide.
Eggers não entrega o terror mastigado que o mercado pede. Ele prefere o desconforto, o silêncio, o sexo filmado sem glamour, a obsessão que atravessa séculos. Não é um filme fácil. Nem quer ser. Mas é desses que ficam mordendo o pescoço da sua memória muito depois da sessão acabar.
FAQ rápido sobre Nosferatu (2024)
É terror ou drama gótico? Os dois. Terror de atmosfera, drama de desejo.
Tem susto? Poucos. O medo nasce da sugestão e da sombra.
Preciso ver o clássico? Não, mas ajuda a pegar as referências.
É muito escuro mesmo? Sim. E é de propósito.
Vale a tela grande? Sim. É experiência sensorial — sombra e som precisam do cinema.

